Comportamento, Cultura, Vida

As vozes dos que vivem na rua

Eles são aqueles que a gente fecha logo a janela do carro diante do sinal vermelho. Se eles batem no vidro a gente diz mecanicamente “não, obrigada”. E olhamos fixo para a frente esperando o sinal verde. Sentimos pena, não compaixão. E nos protegemos da culpa na esquina do pensamento: eles querem dinheiro para beber, eles usam as crianças, pobrezinhas, para nos convencer a dar dinheiro. Não pensam nelas. Ou: por que não vão trabalhar? Como todo mundo? Minha tia precisava de um cara para cortar a grama Abriu o vidro e ele disse que não sabia cortar grama. Ah, aprender que é bom, nem pensar.

Essas impressões já pensamos, ouvimos de várias bocas. Mas, tem o outro lado. Como tudo na vida. E principalmente no jornalismo. Ouvimos as vozes “deles”, as pessoas de rua. A Fala Feminina traz a história da Rosina Duarte que foi para a rua e vive com eles há pelo menos uns 15 anos. Ela edita, na verdade, os moradores  em situação de rua que fazem isso, o Boca de Rua, o único jornal do mundo que é produzido totalmente por moradores de rua.

Dessa experiência surgiu um filme De Olhos Abertos, feito pela francesa Charlotte Dafol que foi premiado com o Troféu do Júri Popular no Festival Internacional de Cinema da Fronteira e melhor documentário pelo Festival Inffinito de Cinema Brasileiro.

Fátima Torri, editora.

Jornal Boca de Rua, produzido por um grupo de moradores de rua de Porto Alegre, completa 21 anos e celebra o lançamento do documentário De Olhos Abertos, que conta a história do meio que serve à comunicação entre a rua e as pessoas.

“O povo da rua passa fome, não tem onde morar, dorme na beira das calçadas, debaixo da ponte, dentro dos esgotos, em cima dos banheiros públicos, nos carrinhos de papelão ou em casarões abandonados. Mas o povo da rua fala. O povo da rua tem boca.”

Esse era o parágrafo da abertura da primeira edição do jornal Boca de Rua em dezembro de 2000, há 21 anos. Custava R$ 1 e já mostrava a que vinha: dar espaço, trabalho e voz a toda uma parcela da população que não costuma aparecer nos holofotes da mídia. Para colocar o Boca no mundo, as jornalistas Rosina Duarte e Cristina Pozzobon dedicam-se incansavelmente. Hoje, o Boca de Rua já celebra voos mais altos, e chega às telonas da sétima arte através do documentário de longa-metragem De Olhos Abertos, da cineasta Charlotte Dafol. Acompanhe a seguir a história do Boca pelas vozes de Rosina, Charlotte e Aline, uma mulher resgatada da rua pelo movimento do jornal Boca de Rua.

Como tudo começou?

“Começa com uma Alice nascida há bilhões de anos-luz no Mundo das Maravilhas, filha da indignação e neta renegada do silêncio. Uma Alice que também é mãe geradora de muitos projetos e, por isso, carrega um nome feminino. Uma Alice alicerce e aliciadora, que não se cala nem acredita no impossível”, declara Rosina, fazendo poesia sobre a Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice), uma organização sem fins lucrativos que, além do Boca, desenvolve outros projetos ligados à comunicação, à cultura e à arte. 

Ainda antes do Boca, Clara Glock e Eliane Brum também participavam do grupo, mas escolhas profissionais fizeram com que tomassem outros rumos. “Eu, teimosa, permaneci, mas só consegui levar em frente porque a Cristina Pozzobon – responsável pela diagramação do Boca desde o primeiro número – estava comigo. Companheiros desempregados, filhos pequenos, duas loucas varridas nadando contra a maré. E fomos indo. Depois, vieram outros para se juntar a nós. O Beto Abreu, advogado, por exemplo, foi fundamental na parte legal e administrativa da Alice”, salienta.

As primeiras reuniões que deram origem ao jornal eram na “Praça do cachorrinho” (Praça Dom Sebastião), em frente ao Colégio Rosário, e Rosina explica que não havia uma proposta fechada, mas a disposição de construí-la em conjunto: “Apesar das boas intenções, tínhamos uma pretensão salvadora fundamentada na nossa cultura e nos nossos valores. Por sorte, eles colocaram as coisas no devido lugar e compreendemos o quanto precisávamos aprender sobre a riquíssima cultura da rua. Ou aprendíamos mutuamente ou o projeto morria à míngua, como acontece com tantas ideias e políticas sociais nascidas dentro de gabinetes refrigerados”, ressalta Rosina. 

Ela conta que, com os anos, o grupo amadureceu, firmando um pacto de confiança, uma metodologia e uma lei interna. Hoje, é o único no mundo produzido e vendido pela população de rua, dentre mais de 200 publicações da International Network Street Papers – INSP (Rede Internacional de Jornais de Rua). “Mais do que um jornal, o Boca é uma comunidade capaz de desafiar o impossível. E tornou-se uma espécie de jornal-escola – aberto a estudantes das mais diversas áreas do saber”, esclarece Rosina.

Alice: uma ONG entre a anarquia e a sustentabilidade

“Hoje somos poucos na linha direta, cada um com uma função bem definida, mas decidindo junto sobre os rumos e os projetos. Resistimos ao modismo de atrelar ONGs aos programas oficiais, assim como à aculturação promovida por certos financiadores. A Alice é meio anárquica, autogerenciável, sem hierarquia ou cargos, independente tanto de verbas públicas quanto de empresariais. Gera renda por meio de feiras e saraus, venda de publicações, assinaturas virtuais (no caso do Boca), projetos que não abalam a integridade de seus princípios e, claro, contribuição de pessoas identificadas com a causa”, conta Rosina.

Um lar para chamar de seu

Sobre a compra de um imóvel para instalar a Casa Alice, Rosina conta que este era um sonho muito antigo e quase impossível. Graças às heranças de duas mulheres, às economias de uma terceira e ao trabalho voluntário do arquiteto Tiago Balem, está se tornando realidade. “A obra caminha a passos lentos, pois o prédio se encontrava em péssimas condições de conservação. Quando pronto, o espaço será aberto ao público, oferecendo programações sociais e culturais, além de abrigar o jornal Boca de Rua”, explica Rosina.

O poder de se expressar

Questionada sobre os motivos que a levam a desenvolver esse trabalho, Rosina é taxativa: “Porque, como diz a Maria Rita Kehl, é preciso criar ilhas de humanidade em meio a um oceano de injustiças. Porque é necessário fazer algo hoje, agora. Porque a vida é caleidoscópica, mas a imprensa a retrata como um plano. Porque é preciso falar e saber as várias faces da realidade para desenvolver consciência crítica. Porque acredito no poder transformador da palavra”. 

Uma pequena revolução brotou em Porto Alegre

“Uma vez fomos convidados a apresentar um pequeno documentário – feito pela gurizada do Boca sob orientação de uma psicóloga chamada Janaína Bechler – no Santander Cultural. Na chegada, dois seguranças nos barraram sem qualquer gentileza. O Bocão – o mais antigo integrante do jornal, hoje falecido – se adiantou e disse, na maior serenidade: ‘Somos os artistas e os diretores deste filme que está passando’. E entrou com aquele gingado de b-boy, arrastando pela mão a namorada Michele. No dia seguinte, encontrei o jornalista Silvio Ferreira – meu parceiro na Alice – e contei a ele, na maior ‘corujice’, sobre aquele momento. Moradores de rua apresentaram um filme para professores e estudantes que pagaram para assisti-los. Sílvio fez um único comentário: ‘O Boca é uma pequena revolução’. É uma definição perfeita. Minha geração sonhou em mudar o mundo, em fazer revolução. A Alice e o Boca são uma revolução possível.”

Sem julgamento, sem assistencialismo

Rosina nunca calculou, mas crê que já passaram mais de 300 pessoas pelo projeto. “Muitos saíram das ruas, outros deixaram as drogas. Ou não. Seguem suas vidas de diferentes formas porque cada um escolhe seu caminho. O Boca não é um projeto assistencialista. A gente se reinventa porque não existe a menor perspectiva de o mercado acolher pessoas sem domicílio, com danos físicos, sequelas psicológicas, passagem pelo sistema prisional e escolaridade baixa. Trabalhamos, portanto, com geração de renda alternativa, na perspectiva da redução de danos e em rede com áreas do tratamento da dependência química, da saúde em geral, da assistência e do ensino. Nenhuma pergunta ou entrevista é feita quando alguém entra, desde que mantenha respeito pelo grupo e interesse em participar. As edições saem a cada três meses, com 12 mil exemplares de 16 páginas. Cada integrante recebe entre 30 e 40 jornais para comercializar, ao preço de R$ 3, com renda revertida totalmente para ele”, informa. Com a pandemia, o Boca se recriou, e passou a vender assinaturas da versão on-line. A semestral custa R$30, enquanto a anual sai por R$ 50.

Rosina Duarte, a mãe do Boca

“Faço parte de um matriarcado. Fui criada em meio a um torvelinho de avós, tias, madrinhas, comadres, primas e irmãs. Aos 11, escolhi ser jornalista e, por quase duas décadas, trabalhei como repórter de jornais e revistas. Durante este tempo, passei a morar com um fotógrafo – Luiz Abreu, meu companheiro até hoje, e também parceiro de trabalho – e tive um filho, Amaro, artista visual, muralista e grafiteiro. Há 22 anos, participei da criação da Alice”, conta ela. Um dos projetos da ONG leva o nome Mulheres Perdidas e Achadas e envolve três grupos femininos: um integrado por idosas; outro, por presidiárias; e outro, por prostitutas. O Boca de Rua foi o primeiro projeto da Alice. “Um terço da minha vida e metade da minha profissão de jornalista eu passei no Boca. O jornal está tatuado, marcado a fogo em mim. A gurizada me virou do avesso”, destaca.

Ilhas cercadas de medo por todos os lados

Quando Rosina era criança, um acontecimento, de certa maneira, conduziu seu caminho ao Boca. E o responsável foi um louco de atar, sem metáforas: “Ele vivia amarrado ao fundo de uma casa próxima a minha e era considerado um demônio encarnado. A criançada morria de medo mesmo sem conhecê-lo, pois só entrevíamos sua sombra quando a porta do seu covil se abria por descuido para logo ser fechada. Eu o vi uma única vez, por cinco minutos, se tanto. Tarde de verão, hora da sesta na fronteira, eu acabara de sair de um armazém e chupava um favo de mel presenteado pelo dono quando avistei o louco na calçada. Levava cordas penduradas nos pulsos – diziam que as roía para se libertar –, peito nu, cabelos e barba flutuando em torno da cabeça. No meu pavor, parecia um colosso com três metros de altura. Ficamos os dois parados, como os duelistas dos filmes de faroeste. Por fim, fui até ele e, em certo momento, eu soube: ele também sentia medo. Então, como uma senha ou um passe, estendi o meu favinho de mel. O louco olhou desconfiado e, num repelão, arrancou-me o favo da mão. Quando chegaram os homens para levá-lo de volta à sua prisão, não desviou os olhos até sumir para sempre da minha vida. O favo ficou no chão. Talvez o único que ele provou na sua existência segregada. Seu nome, soube muito mais tarde, era Aquidabã – ilha, em guarani. Quido, como o apelidamos, me retribuiu a gentileza acidental de guria assustada com uma preciosa lição. Percebi, naquele dia, que o medo não era maior do que eu. Nem sequer maior que aquele gigante enlouquecido que um dia deixou de ser ilha e construiu uma ponte até uma criança para ensiná-la sobre a coragem, a doçura e a grandeza de todos os seres. Mesmo – e principalmente – os invisíveis e indesejáveis. Eu lhe serei eternamente grata”, conclui.

Aline Leal, uma história de redenção

Aline Gonçalves Leal, 37, morou na rua por quase 15 anos, devido a conflitos familiares e ao uso excessivo de álcool. “Minha mãe me deu um golpe. Me mandou para uma fazenda no interior, quando eu voltei, ela tinha vendido a casa que minha vó tinha deixado para mim, e me deu metade do dinheiro”, conta. “Minha mãe era uma pessoa totalmente ausente. E o meu pai eu fui conhecer com 35 anos. A minha vó que fazia tudo por mim. Eu me espelho muito nela. Ela morreu com 92 anos, uma pessoa digna, honesta e guerreira. Nasceu em 1922 e costurava, bordava, pintava, sabia fazer de tudo. Mas foi negociada pelo próprio pai para casar com um militar. Aí ela resolveu abrir um negócio. Tipo um bar, no Hotel Majestic. E ela se apaixonou por um garçom, e como tinha contrato de casamento, ela perdeu tudo. Ela assumiu, estava apaixonada e queria o divórcio. Nessa época, ela tinha adotado a minha mãe”, revela. 

Abandonada ainda bebê, a mãe de Aline, quando jovem, reproduziu o trauma e entregou a filha aos cuidados da avó. “Minha vó, como costureira, tinha como me sustentar, e ela me tratou bem. Eu tocava na banda, eu fazia parte do coral e do clube de teatro. Fazia curso de informática. Minha mãe só foi se apresentar realmente na minha vida quando eu tinha emprego, tinha cartão de crédito”, lembra Aline, que fez compras em crediário a pedido da mãe e teve de arcar com o prejuízo. Hoje ela tem uma filha e, além de atuar no Boca, trabalha em uma padaria e na feira orgânica da Redenção. “Moro no bairro da Glória faz sete meses, mas saí da rua faz mais de três anos”, comemora. 

Charlotte Dafol

Formada em Ciências Políticas e mestre em História, Charlotte Dafol nasceu na França e estudou sobre o impacto social do cinema na Itália. Envolvida com a Alice há pelo menos uma década, em 2019, ela colocou o Boca de Rua nas telonas através da produção do longa-metragem De Olhos Abertos, que foi lançado em Porto Alegre no mês de janeiro, após circular por 23 festivais de cinema, no Brasil e em mais doze países pelo mundo.

Segundo Charlotte, fazer o filme foi uma grande experiência: “Foi meu primeiro longa e meu primeiro documentário. Quando me atirei nesse projeto, não tinha o dinheiro para fazer um filme inteiro. Fui atrás de mais recurso e entendi o que é uma produção como um todo, que vai muito além de uma direção artística. Ele foi uma escola por si só”, conta. Após ficar pronto em março de 2020, o filme ingressou no circuito de festivais, o que acabou se prolongando em função da pandemia. 

Em breve, novas exibições gratuitas devem ocorrer. Acompanhe as notícias do filme em www.deolhosabertos.com.

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