O abuso emocional tem uma cara linda. E cheia de promessas. E tem dono.

A clássica cena da rainha má que enfeitiça a enteada oferecendo uma maçã envenenada para a pobre moça, que era a mais bonita do reino, está em nossa memória na história da Branca de Neve.

Ela aceita morder a maçã encantada oferecida pela velhinha querida. Infelizmente, essa história de fruta envenenada não existe só em contos de fadas. Ela está em nossos dias. E começa em casa. Com pais agressivos, ausentes, abusadores. Começa nas famílias. As maiores vítimas, filhos e filhas, futuros homens e mulheres. Das cavernas até hoje, sonhamos em ser aceitas, validadas, e nos deixamos levar pelo amor travestido de doçura, suavidade, sedução e muuuuitas promessas! E, ao morder a maçã, caímos em um vácuo profundo. O falso amor premedita cada passo que leva as vítimas ao sofrimento. E começa com uma bobagem: um apelido, uma risadinha de canto. E vai corroendo toda a autoconfiança.

Não só nas famílias, o predador pode ser uma amiga, um chefe que institucionaliza a violência. Podem ser mães. Ah, as mães, quantos males podem causar quando colocam o egoísmo no lugar do amor incondicional?

Quando as vítimas veem, estão doentes. E o predador é o amor que lhe cuida. Pode ser a mãe, o chefe, o colega ou o “amor” de sua vida. E dê-lhe inocular veneno.

Tudo isso que escrevi está no livro da Hilda Simões Lopes, A Maçã da Rainha Má – Conversando sobre relações tóxicas e abuso emocional. Uma mulher incrível. Não há suficientes adjetivos para falar de Hilda. Ela é um ser humano necessário.

Leiam essa matéria. E vamos aprender que nem toda maçã vermelha e reluzente é promessa de felicidade.

Boa Leitura!

Fátima Torri, editora da Fala Feminina

Existe vacina para a selvageria do abuso emocional nas relações

“O abuso emocional é exercido de maneira planejada; o outro é o foco do predador que, por inveja, deseja diminui-lo, que é sádico e usa o outro para satisfazer seu prazer doentio, que se sente inferior e, ao enfraquecer sua vítima, percebe-se forte. Esse abuso – tão comum hoje – é dramático, é uma forma de violência fortíssima, levando a doenças emocionais, físicas e até à morte, mas é invisível porque ele é subterrâneo.”

O parágrafo, acima é parte do livro escrito por Hilda Simões Lopes. E é resultado de muitas pesquisas e análises em suas andanças pela vida. Bacharel em Direito, mestre em Sociologia, essa pelotense já conquistou o Prêmio Açorianos de Literatura e é autora de outros nove livros.

Observar as pessoas é uma de suas práticas favoritas. E assim, surge A Maçã da Rainha Má – Conversando sobre relações tóxicas e abuso emocional (Literare Books International, 2021).

Enquanto o mundo caminha para a barbárie e a violência avança sobre relações em que deveria haver afeto e cuidado, enquanto a sede pelo poder sustenta a manipulação e a mentira, existe gente que busca uma saída. Sim, para essa pandemia de abusos emocionais, já existe uma vacina. Mas, não de graça: custa todo o autoconhecimento e honestidade consigo mesma que você puder reunir.

“É comum e fácil que, sem intenção de causar um estrago, façamos ou digamos coisas que machuquem emocionalmente o outro; deixam ou não alguma marca, mas são passageiras”, explica nossa entrevistada. Mas, diferente dos erros que todos cometemos em dias ruins, o abuso é premeditado. “Esse tipo de violência consiste em todo um processo de fragmentação do outro, que vai se fragilizando de diversas formas e não consegue reagir. As pessoas demoram a perceber e, às vezes, só vão entender quando já estão doentes que têm um predador próximo a elas. Isso acontece em relações de amizade, de família, de trabalho, e hoje está muito disseminado, porque nós estamos em uma sociedade grau zero, que é uma sociedade próxima à barbárie, em que a maior parte de seus membros não tem dignidade, nem econômica, nem humana, nem política, como cidadão capaz de opinar, e isso é seríssimo”, adverte ela.

Poder que mora dentro de cada um

Como uma maçã envenenada oferecida à Branca de Neve, o abuso emocional costuma se disfarçar de belo fruto reluzente. Em sua longa experiência como pesquisadora na Universidade de Brasília, Hilda trabalhou com mulheres, migrantes, e lidou por um ano inteiro com delinquentes juvenis. Acostumou-se a identificar o estrago causado pelo veneno inoculado nas vítimas de violência emocional. A contaminação é devastadora, e não raro transforma vítimas em futuros abusadores, como um ciclo doentio que coloca a saúde de nossa sociedade na UTI.

Em contos que equilibram literatura e o relato das pesquisas vivenciadas, Hilda trata de diversos temas. Em todos, o poder nas relações está presente. “O poder é a nossa potência para nos colocarmos na vida, mas, cada vez mais, há uma distorção imensa. As pessoas acham que têm que ser poderosas, ter o domínio da situação a qualquer custo. Uma sociedade que dá dignidade às pessoas faz elas perceberem que o local do poder é dentro de cada um. Você tem que se sentir com potência para viver, e isso está sendo retirado de nós, por toda a complexidade, a rapidez da mudança, a polarização que veio com as redes sociais, que é uma coisa tão boa, mas está sendo tão mal-usada, e o abuso é terrível, porque ele vai no coração da pessoa. Com ironia, com risinho, apelido aqui, desfazendo do trabalho da pessoa ali, e vão atingindo a autoestima. E hoje, as pessoas estão tão inseridas nessa rapidez desse mundo; tem que pular uma barreira, e outra, e outra, tem que cumprir meta, meta, meta, e estão perdidas de suas raízes, e a raiz é o que nos dá mais força”, salienta.

“Informação é um verniz, mas nós precisamos de raiz”

Essa força de que Hilda fala é a que encontramos dentro de nós quando estamos habituados a alimentar nossa vida interior, quando vivemos sintonizados no próprio Ser, a despeito do ter e do parecer. Uma relação de honestidade consigo mesmo que começa na infância. “Como você vai dar fortidão a uma criança que não tem suas memórias vivas, que não sabe nada de suas raízes? O que nós temos hoje? Temos informação, apenas informação, que é o que a rede social te dá; é um verniz, mas nós precisamos de raiz!”, exclama.

Hilda conta que, na escola onde suas netas estudam, avós e avôs são convidados esporadicamente para conversar com os alunos sobre como era a infância deles. “Eu acho isso fantástico, porque hoje as crianças não estão mais interagindo, nem com os pais, muito menos com os avós ou com os tios mais velhos, e é essa raiz que vai fazer os galhos crescerem e darem frutos, porque sem isso nós ficamos com uma sociedade muito estéril”, defende ela.

“Sem falsas coberturas e falsos enfeites”

Voltando no tempo, ela fala de sua infância no campo, onde viveu até os nove anos. Criada por uma família grande e unida, ela teve professores particulares até os dez, quando entrou no colégio.

“Minha grande escola foi a natureza, o céu estrelado, o nascer e o pôr do sol. Eu não entendia por que as pessoas discutiam opiniões e queriam-se iguais umas às outras se as árvores e as flores eram lindas e não se copiavam. Meu cavalo – brabo para com estranhos de relho na mão – me deixava andar de costas, de pé, pegá-lo no campo e trazê-lo para colocar a sela. Por quê? Porque eu lhe dava carinho, falava com ele e, quando ele suava, eu lhe dava banho de mangueira. Percebia como as árvores se despiam no inverno para depois ficarem ainda mais frondosas e coloridas, e então eu pensava que o ser humano devia ser verdadeiro e se mostrar como era, sem falsas coberturas e falsos enfeites. Assim fui observando o mundo. Um dia – devia ter seis ou sete anos – perguntei ao meu pai como eu faria para escrever uma carta para Deus. Quando soube que isso era impossível, fiquei triste e preocupada. Deus precisava saber que as pessoas discutiam por quererem todas agindo ou pensando igual; e tinha de saber que, para se alimentar, as pessoas tinham de comprar comida, e aí os pobres poderiam não ter dinheiro para comer. Então, eu subia no meu jacarandá e ficava pensando: Deus tinha de saber que tudo estava errado, muito errado. Havia livros na fazenda, e houve três que me reviraram por dentro, todos sobre justiça (O Sol por Testemunha e O Pequeno Lorde) e violência (Os Sinos de Nagasaki). Passei a perguntar o que eu deveria estudar para entender como as pessoas se relacionavam e como ter um mundo mais justo. Foi uma infância muito feliz, e nunca pensei que o mundo fosse tão complicado.”

Barbárie onde deveria haver afeto

Mas, infelizmente, piorou, e o mundo ficou ainda mais complicado. Enquanto as pesquisas de Hilda mostram que nada é tão importante quanto o afeto e o respeito, ela se horroriza com o terrível aumento do abuso sexual contra crianças e adolescentes, que está cada vez pior nas periferias, mas também cresce nos condomínios de luxo.

“Ficou bem claro que a pobreza pode desencadear a conduta delinquente e desequilibrada de crianças e adolescentes, mas o fator condicionante – sempre – é a falta de afeto, o desrespeito, a violência. Tem de acontecer uma mudança de cultura. O que é extremamente difícil e delicado. Esse processo, mal feito, pode desencadear o surgimento de uma ‘contracultura’, o que seria uma aberração social. Teríamos de ter políticas públicas sensíveis e conscientes de tal importância”, alerta.

“É tempo de as pessoas encontrarem em si o próprio rumo”

Podemos dizer, quem sabe, que essa mudança de cultura deveria ser feita com muito cuidado, de modo gradual. No entanto, Hilda afirma que a transformação social nunca foi tão acelerada quanto nos dias atuais.

“Estamos em processo de aniquilamento da sociedade patriarcal em que as famílias – de qualquer nível social e econômico – eram hierarquizadas. A figura mais velha controlava com palavras, ordens e mesmo com o olhar o comportamento do grupo. Mulheres chamavam o marido de senhor, bem como filhos assim chamavam os pais. Havia uma ‘chefia’ rígida que era temida e exigente. Hoje, as pessoas estão liberando suas revoltas, reclamando, erguendo bandeiras e frases panfletárias. Eu acho que isso faz parte da dialética das grandes mudanças sociais. Quando cai um modelo que atravessou gerações é como se as pessoas perdessem os referenciais. Novos serão estabelecidos. E o mais importante deverá ser a descoberta da importância de respeitar, ser justo, verdadeiro e solidário; e ficar firme sobre os próprios valores (o autoconhecimento) sem precisar que alguém grite o que se deve fazer”, avalia.

Se, por um lado, as mudanças nas dinâmicas familiares dão voz a muitos que se calavam, por outro, a desestruturação desses referenciais prejudica a formação dos mais jovens. Nesse contexto complicado, como munir as crianças de afeto e fortalecê-las contra agressores? Como ajudar para que sejam pessoas cheias de vida viva? Hilda compreende que são questões difíceis e fundamentais. Para começar, ela defende que haja um intenso programa de educação familiar, pois repetimos o que recebemos, e é preciso uma ruptura.

“Sim, estamos numa encruzilhada. É tempo de as pessoas ‘encontrarem em si o próprio rumo’. O caminho ideal é através do exercício da criatividade: o que você mais gosta de fazer, o que o desliga dos apelos cotidianos? Aí você aciona sua essência, seu eu, e aí é onde você encontra sua fortidão. Caso contrário, ficará à mercê de opiniões desconexas que o farão fraquejar ao longo da vida”, ensina Hilda, cheia de sabedoria.

“O ser humano precisa entender que em sua essência ele guarda uma faísca do universo – a física quântica é cada vez mais clara nesse sentido. É em si que o ser humano guarda sua maior força, não se encharcando nas coisas do mundo exterior – válidas e importantes – mas incapazes de lhe dar o suporte necessário. Os indivíduos doentes emocionalmente sempre existiram. A literatura é farta em personagens abusadores. Por quê? Porque o ser humano precisa se ‘desanimalizar’ e, como diz M. Vargas Llosa, para tal acontecer, precisamos de arte, muita arte. Seja música, poesia, ou mesmo contato com a natureza. O ser humano precisa se nutrir do belo para ‘atravessar’ o lixo (competição, ambições, ostentações, inveja etc) que o mundo nos despeja diariamente. A arte é um dos caminhos que nos auxilia no processo de autoconhecimento, de sensibilização e, portanto, de entendimento de nós próprios e do mundo circundante.”

Há esperança

Pode parecer que a violência – brutal, seja explícita ou subterrânea – é institucionalizada. Mas, acredite, é pior que isso. Ela não está na raiz de nossas instituições, mas em nossa natureza. E remediá-la, portanto, é trabalho a ser feito de dentro para fora. Quando questionada se alguma sociedade já conseguiu dar dignidade à totalidade de seus membros, Hilda esclarece: “Não, em nenhum lugar, nem em nenhuma época. Surgem grupos, pensadores etc, mas a ‘fogueira de vaidades’, as invejas e as ambições por alguma forma de poder a tudo devoram”.

É a vida, bem sabemos. E sim, pode demorar. Cada um de nós, a cada momento, precisa escolher de que lado quer estar. Vamos colocar mais lenha nessa fogueira de vaidades, agindo tal qual um predador? Ou vamos vencer nossos demônios internos e tratar nossas próprias feridas para não destilar veneno sobre os demais?

“Minha esperança são as novas gerações. Quando vejo jovens que não querem ter automóvel, que condenam o consumismo exacerbado, preocupam-se com o planeta, os animais, os índios e as minorias… Ah, aí dá para ter um fio de esperança”, encerra Hilda. Mas, não vá embora, ainda. Confira a seguir dois trechinhos do livro:

“A competição não tem limites porque você está na estrada do Poder, onde o comando é de quem mais tem, mais pode, mais aparenta, mais exibe. E nesse caminho – estimulado o tempo inteiro – uns esmigalham e destroem os outros, tanto na vertical quanto na horizontal. No mais fundo de si, permanecerá a ânsia por ‘algo mais’ a ser aplacada para ir em frente. Então, vai-se adiante, ainda mais consumindo, amealhando, aparecendo, dopando-se com narcóticos, drogas químicas ou entorpecentes; ou criando torrente de doenças reais ou imaginárias, e indo em frente, silenciando como for possível o profundo vazio que grita mudo e urra dor que não vem do corpo, porque vem sabe-se lá de onde. E exige mais remédios, ou mais drogas, ou mais shoppings, ou quem sabe dançar mais, cantar mais, beber mais e mais para dormir, aquietar o que dói e não se pode arrancar.” (A Maçã da Rainha Má, nota da autora, pág. 8-9).

“Não percebemos, mas as histórias contadas na humanidade, seja para adultos, velhos ou crianças, sempre focam no fundamental: a fidelidade da pessoa para consigo mesma. O local da fidelidade é a ‘casa’, é a alma e o coração. É onde vive o melhor do ser humano, em imagens que, se acessadas e exercidas, podem tornar a pessoa intocável aos abusadores e manipuladores, e impermeável à toxidez das invejas e das ambições.” (A Maçã da Rainha Má, pág. 193).

Você encontra A Maçã da Rainha Má à venda na maioria das grandes livrarias on-line, na própria loja virtual da Literare Books e também no Mercado Livre. Mais do que uma dica de leitura, fica a recomendação para refletir, repensar o agir e o falar. Quem sabe, aproveitar que o ano está começando e se comprometer com uma vida mais viva, de mais respeito e menos violência.

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  1. SarahV

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