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A revolução de Raíssa Assmann Kist

Quem é a empresária gaúcha que criou as primeiras calcinhas menstruais 100% nacionais

Ao fazer um mergulho profundo para se conhecer melhor, Raíssa Assmann Kist viu nascer um projeto que hoje muda a vida de várias meninas e mulheres. Aos 28 anos, a gaúcha de Santa Cruz do Sul é um dos nomes à frente da marca de absorventes ecológicos Herself, criada em 2016. O processo que deu origem à empresa, porém, começa lá atrás, na infância e adolescência de Raíssa, resultado de uma soma de experiências e inquietações que a moveram para criar um produto transformador. 

Filha de contadores e neta de agricultores, Raíssa nasceu e cresceu em meio ao mundo dos negócios e em conexão direta com o campo. “A reflexão sobre a procedência dos produtos e sobre a responsabilidade socioambiental era algo que sempre me instigou”, revela. Cursando a faculdade de Engenharia Química na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), seu foco durante a pesquisa de iniciação científica foi questionar o uso de plásticos descartáveis. Nesta época, saiu em busca de ideias que trouxessem soluções para a vida das pessoas por meio de um modelo de produção consciente, que não causasse impacto no meio ambiente. Foi aí que dois mundos se encontraram. No mesmo período, Raíssa passava por um momento difícil em sua vida, em que não se sentia realizada no que fazia. Buscando novas formas de se expressar, ela embarcou em uma jornada de autoconhecimento que a levou a questionamentos sobre alguns estigmas e tabus envolvendo o universo feminino. “Venho de uma família bem conservadora, em que não havia espaço de diálogo para falar de menstruação. Então nesta época veio a inquietação sobre o uso dos absorvente: Desde quando são utilizados? Por que são usados os modelos de plástico e não outros? Por que algo tão natural para a mulher era visto como errado? Todos esses incômodos vieram à flor da pele, para me abrir e ressignificar a minha relação com a menstruação”, diz. 

Raíssa conta que ter vivido algumas situações também foi muito importante para criar a Herself. “Minha menstruação foi tardia e me questionava se estaria tudo bem comigo – não conseguia informações em lugar nenhum, nem com minha família, nem na escola”, recorda. E, aos 22 anos, querendo ressignificar a sua relação com a menstruação, percebeu que poderia fazer a diferença na vida de outras mulheres.

A Herself nasceu com a missão de trazer o aspecto social e político da menstruação. “Aqui no Brasil, estávamos sem inovação para protetores menstruais desde 1930”, observa. Além do produto em si, Raíssa queria algo que incentivasse um novo jeito de lidar com a menstruação, mais leve e acolhedor. Saiu então a conversar com mulheres do Brasil todo para saber como se sentiam em relação ao assunto. Foram 800 entrevistas, relatos emocionantes e uma transformação visível. Em cerca de uma hora de conversa, mulheres que diziam não querer mais menstruar já demonstravam interesse em ser as primeiras a participar dos testes para a produção das calcinhas menstruais. “Tivemos certeza de que a questão da menstruação não estava resolvida. Elas estavam simplesmente acostumadas com algumas insatisfações provocadas pelos absorventes comuns, como alergias e assaduras, que eram silenciadas principalmente pela questão do tabu. E ninguém havia, até então, perguntado para as mulheres como se sentiam usando os protetores menstruais existentes, por isso não era desenvolvido um produto que de fato atendesse as suas necessidades”, afirma Raíssa. A partir daí, surgia um novo mercado. “Os absorventes têm todo o seu mérito de acesso ao longo de muitas décadas, e vão continuar tendo esse mérito principalmente entre mulheres que não têm acesso à água, mas, nesse momento, as mulheres do século XXI querem poder escolher outras soluções também”, acrescenta.

Para que a Herself saísse do papel, Raíssa lançou uma campanha de financiamento coletivo, que deu super certo. Prova disso é que a marca é a responsável pelas primeiras calcinhas menstruais 100% nacionais e pelo primeiro biquíni e maiô menstrual do Brasil. Todos os produtos são feitos localmente e com 100% de matérias-primas nacionais.

Educação

A busca por equidade de gênero, a partir da quebra de tabu sobre menstruação, é o grande objetivo da empresa criada por Raíssa. A Herself atua em duas frentes: com desenvolvimento de produtos tecnológicos para menstruação e com acesso à informação segura e de qualidade sobre o funcionamento do corpo das mulheres, por meio da Herself Educacional, empresa fundada em 2019 junto da bióloga e educadora Victoria Castro. A iniciativa oferece oficinas para crianças e mulheres adultas em vulnerabilidade social. “Desde o início, percebemos a importância de trazer as informações sobre os aspectos positivos da menstruação, sobre os benefícios do autoconhecimento e sobre autocuidado”, destaca Raíssa. A empresária se diz apaixonada pelo ativismo menstrual e sente como missão trazer o aspecto social e político da menstruação para as mulheres. “É a (r)evolução mais íntima que cada uma de nós pode ter ao se conectar com algo que é tão singular, único e natural para cada uma. O impacto e ao mesmo tempo a potência que esse processo tem em nossas vidas precisa ser ressignificado para gerar ainda mais transformação”, afirma. 

A Herself Educacional já realizou oficinas de bioabsorventes e educação menstrual dentro de institutos penais no Rio Grande do Sul. Um dos sonhos da empresa é escalar esse impacto para outras instituições e trazer soluções para mais meninas e mulheres.

Vida de empreendedora

Não foram poucos os desafios enfrentados até estruturar o negócio para a produção das calcinhas ecológicas. Raíssa conta que chegou a pensar em desistir quando se deparou com as dificuldades para definir a modelagem e confecção da peça. Até as costureiras mais experientes não conseguiam finalizar o modelo. “As primeiras calcinhas ficaram desconfortáveis. Sem entender nada de costura ou maquinário específico, não conseguíamos ajudar. Estávamos entrando em um universo desconhecido e buscamos aprender a fazer o básico de modelagem para chegar no resultado final. Precisávamos garantir que as peças não teriam a sensação de um absorvente ou uma fralda”, recorda Raíssa. 

A empresária então buscou cursos específicos de modelagem para poder ajudar as costureiras e ir aperfeiçoando as peças. Assim, em três meses, aprendeu a fazer a modelagem, desenvolveu o segundo modelo de calcinha e graduou os primeiros seis tamanhos da peça. Em 2018, a marca finalizou o Manual de Confecção, depois de trabalhar com nove modelistas envolvidas.

Além da confecção das peças, Raíssa deparou-se com o desafio de empreender em uma área ainda permeada por tabus. Seu trabalho envolveu muita análise de mercado, agregando dados internacionais, referências de consumo nacionais e pesquisa de contexto histórico para chancelar a necessidade de inovação no segmento. “Tenho muita consciência do meu espaço de privilégio por começar a empreender ainda na faculdade, sem uma fonte de renda desde o início. Mas esse espaço de uma mulher, mesmo branca, querendo empreender num contexto de inovação e tecnologia para menstruação ainda é muito descredibilizada em função de ter uma narrativa muito masculina de que a necessidade de novos produtos menstruais não era válida porque já existiam os absorventes descartáveis”, comenta Raíssa.

Momentos de conexão

A Herself ocupa boa parte da sua vida, mas não é só isso. Quando não está trabalhando, a empresária gosta de caminhar pelas ruas de Porto Alegre, onde mora, e assistir e participar de movimentos de música independente pela cidade, como boa apreciadora de arte e dança. Curtir os parques e contemplar o pôr do sol na beira do Guaíba também estão entre seus passatempos favoritos. É em cenários como esses que ela se abre para conhecer as histórias de pessoas com quem acaba cruzando pelo caminho. “Gosto de aproveitar meu tempo conhecendo outras realidades, experiências e vivências. A conexão e a energia que a natureza, o mar ou o campo trazem, são muito estimulantes, busco ter esses momentos só para mim frequentemente”, destaca. Quando o período de folga é um pouco maior, Raíssa aproveita para voltar para a casa da família do interior, rever os primos e curtir a serenidade da casa dos avós. “Me faz muito bem e eu gosto muito”, afirma. 

Transformação e sonhos

Com a Herself, Raíssa não só se libertou de algumas crenças limitadoras na sua vida pessoal como abriu um universo de possibilidades para uma rede de mulheres que se fortalece cada vez mais. “Minha maior conquista é ter a certeza de que a semente dessa missão está plantada, que muitas meninas já estão tendo uma experiência muito mais positiva com a primeira menstruação”, diz, orgulhosa. 

Porém, a empresária sabe que ainda há muito a ser feito para garantir dignidade menstrual a comunidades femininas do mundo todo. “Saber que meninas e mulheres deixam de frequentar a escola por falta de acesso a protetores menstruais ou por não ter informação sobre o que está acontecendo com seu corpo nos faz entender que nossa missão está só começando”, enfatiza. 

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