Vida

Câncer, a ameaça invisível

São as coisas invisíveis que mais nos atormentam. Nos espiam, antes de termos consciência de que elas existem. Foi e está sendo assim com a Covid. Mas, antes dela, tem um pavoroso bicho, um monstro invisível que ronda as mulheres. De todas as idades, cores, tamanhos. Ele parece acompanhar todos os passos femininos. Em todos os momentos da vida. É o câncer de mama. Ser que aparece e causa tempestade sem precedentes na vida das mulheres. Se alimenta de seus corpos, invade, danifica, tortura. Não conheço nenhuma mulher que não seja ameaçada pelo câncer de mama.

Os seios que causam prazer e alimentam a humanidade são os mesmos que podem matar.

Mata menos hoje em dia. Mas, dilacera a vida feminina quando se apresenta.

E, neste mês de Outubro Rosa vamos falar das mulheres que estiveram ou estão sob o processo do câncer.

De várias idades, essas mulheres contam suas experiências e as saídas que encontraram para, além de sobreviver, viver e conviver com a doença, e fazer dela uma companhia inevitável, e entenderem-se com essa moradora de seus corpos no dia a dia. Saíram diferentes ou, ainda no processo de tratamento, já se questionam.

Algumas tentam viver sonhos, como a mulher de mais de 60 que resolveu fazer uma espécie de easy rider e sair de carro pelo Brasil conhecendo o que vem pela frente.

Depois dos filhos e casamentos, desistiu de tratar o severo câncer que lhe tomou o corpo. Mas não sua vida. Ainda. Como uma peregrina errante, deixa-se levar.

Como nunca fez antes.

A questão que me vem sempre, sempre à cabeça: será que devemos esperar o câncer para sermos errantes de nós mesmas?

Acompanhe nossa matéria com a Isabel, a Carmen, a Margrit.

Fátima Torri, editora

Isabel Faria, a que nunca desiste!

Como comunicadora, eu sou uma contadora de histórias.
Meu trabalho é contar as histórias das empresas, seus executivos e personagens. Sempre tive dificuldade em contar as minhas histórias.
Depois de tanto ter divulgado Outubro Rosa e campanhas de saúde da mulher no trabalho, neste segundo ano de pandemia, eu me encontro, pela primeira vez, no lugar de quem tem uma história que precisa ser contada.

Há alguns anos, fiz um curso de escrita criativa e a professora falou:
“Histórias são sobre personagens extraordinários passando por situações comuns ou sobre pessoas comuns passando por situações extraordinárias.”

Eu me encaixo nesta segunda opção.
Entenda, não é fácil para mim. Porém, as histórias parecidas com a minha que eu li e ouvi foram tão importantes, que eu preciso devolver isso ao compartilhar o meu depoimento.


Em abril de 2021 eu diagnostiquei um câncer de mama agressivo, avançado e metastático.


Até então eu tinha a “saúde perfeita”. Fazia exercício físico de segunda a sexta, privilegiava os orgânicos, fazia exame preventivo todos os anos. Era noiada com pote de plástico, na minha casa é tudo vidro. Era noiada com desodorante, há alguns anos só uso alternativos. Na pandemia, até meditação eu comecei a fazer! Enfim, nada radical, mas sempre fui uma pessoa consciente.

Em janeiro, 3 meses antes do diagnóstico, tinha feito um ultrassom de mamas. Normal. Meu câncer é bem raro e uma ginecologista que eu passei em março já com caroços grandes na mama e axila disse pra eu não me preocupar, que não era nada.


Foi só porque estava com muita dor e fui no PS para pegar uma receita de anti-inflamatório que fiz uma tomografia e descobri os tumores. Fui parar num hospital especializado, que só atende pacientes com câncer. Na maratona do diagnóstico que inclui infinitos exames para determinar inúmeras variantes do tipo de câncer, eu era sempre a mais nova da sala de espera.


Entrava para fazer os exames de imagem recebendo um boa tarde normal e saía ganhando um olhar de pena e invariavelmente: “Vai com Deus, boa sorte”. Aquilo me irritava profundamente. Todas as vezes eu respondia: “Boa sorte pra você também”.

Eu ainda não sabia, mas quem fazia o exame via que eu tinha 3 tumores grandes na mama e um bloco de linfonodos quase do tamanho de uma bola de tênis. Era impactante.


Neste período de exames iniciais, da noite para o dia, o meu seio dobrou de tamanho e se deformou de uma maneira que eu chorava cada vez que tinha que tomar banho e olhar pra ele. Finalmente, iniciei quimioterapia no dia do meu aniversário de 38 anos, em maio.


Pelo tamanho dos tumores, era preciso fazer a químio antes da cirurgia.
Fiz seis sessões do pior tipo de químio que existe (minha médica só me deu essa informação na última).

Fiquei totalmente sem pelos pelo corpo. Minha imunidade foi a zero no meio da pandemia. Entrei na menopausa. Meu marido teve que parar de treinar jiu jitsu e minha filha de 4 anos teve que ficar sem ir à escola pelo segundo ano consecutivo, depois de ter a escola fechada pela pandemia. Tudo para que eu não pegasse nenhuma outra doença neste período. Isso sem contar os efeitos da quimioterapia que não dão trégua por dias.

Meu câncer é dos mais raros, de uma estupidez sem tamanho. Assim como ele se formou rápido, se desfez na mesma velocidade. Bastaram as 6 sessões de químio para os tumores desaparecerem. Mesmo assim, dada a gravidade inicial, terei que tirar o seio inteiro e todos os linfos da axila, o que deixa sequelas. Depois, pelo menos mais duas cirurgias reconstrutoras.


Ainda farei radioterapia e ficarei mais de um ano tendo que ir ao hospital para tomar remédio de terapia alvo na veia. É um processo brutal. Mutilador.

Mas a gente se concentra em viver. O meu mantra é: “quem vai criar a minha filha sou eu”. Afinal, não coloquei filha neste mundo pros outros criarem.

Por fim, pra quem chegou até aqui, quero deixar dois aprendizados:
Se você tiver qualquer coisa estranha na mama ou axila, vá direto ao mastologista. Não passe no ginecologista antes. Tome as providências para engravidar quando tiver vontade. Não espere a hora certa que nunca chega. Você nunca sabe quando ficará impossibilitada de ter filhos biologicamente.

Por que não eu?

Costumava passar os verões na Praia Brava em Floripa. Tudo muito alegre e colorido pelo sol de frente para o mar. Amigos da Ilha, de Brasília e de todo canto passavam por lá animando as várias festas no Bar do Pirata, debaixo da minha varanda. Vida intensa. Cheia de graça e alegrias. A saúde aguentava o tranco do tilintar das taças borbulhantes. No dia seguinte tinha aquele mar gelado que levava as ressacas para os braços de Iemanjá e dos deuses que nos protegiam. E as vigorosas caminhadas sobre as areias lambidas pelas ondas. Malhar, rir, brindar a vida. Nossa rotina com ou sem férias.

Uma década frequentando a Brava. Foi num verão, o último lá, fiquei sabendo do resultado dos exames. Aqueles que as mulheres intensas, porém sensatas que somos devem fazer anualmente. A mamografia apontou um CA na mama direita com indicação de biopsia. Susto. Coração palpitando, aos saltos. Ainda tonta ouvi de uma querida amiga da praia algo que alterou minha perspectiva. “Amiga, a pergunta que você deve fazer é: Por que não eu”?

Ela já tinha passado por CA na tireoide e mantinha o astral lá em cima, apesar de sequelas da cirurgia terem lhe afetado a faringe com comprometimento da fala. “É porque, em geral as pessoas sucumbem a vitimização, explicava a Dulce”. “Por que logo eu, meu Deus?”.

Percebi imediatamente a pertinência dessa pequena inversão. Afinal estamos todos e todas sujeitos a mazelas, mesmo fazendo tudo (ou quase tudo) nos protocolos e ensinamentos da ciência médica no sec. XXI. Tinha 49 anos e tudo em cima. Trabalhando em Brasília desde os 17 e veraneando quando as férias chegavam. Tive um filho aos 23. Amamentei-o durante um ano. As mamas sempre foram objeto de preocupação. Muitos nódulos e densidade alta nos ciclos hormonais. O acompanhamento constante permitiu a descoberta no início. Isso fez toda a diferença. Claro, um bom plano de saúde, médicos especialistas de alta performance. Amigos. Tudo isso é fundamental. E foi.

Agora, a atitude de não se achar vítima do destino, dos azares da vida, essa é que muda tudo. A humildade de se saber sujeito das discrepâncias das células, aleatórias ou não, é o que transforma de verdade e pode trazer a cura. Ou não. Mas pelo menos se a gente morrer, morre lutando. É assim que nos tornamos sobreviventes. E os sobreviventes são fortes de espírito. E de alma. E como disse Fernando Pessoa: “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

Margrit Dutra Schmidt

A descoberta da leveza

Meu nome é Carmen Gonzalez, natural de Santana do Livramento, tenho 63 anos e sou juíza do trabalho, atualmente, desembargadora presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4.a Região (TRT 4).

Eu penso que as pessoas me veem como uma pessoa dedicada, responsável, que tem vocação para o que faz, e um pouco autoritária, talvez, muito ciente da sua posição e do que deve fazer. Eu me vejo um pouco assim também. Muito preocupada com a instituição da justiça do trabalho, com o futuro do Direito do trabalho.

Sou amiga dos meus amigos, da minha filha, dos meus familiares, e procuro respeitar o ponto de vista de cada um.


Eu sempre fui uma pessoa muito, muito saudável, e sempre me gabei disso, de que eu era uma pessoa muito forte. Eu, com 32 anos de magistratura, não tenho praticamente licença-saúde, eu tive a licença-maternidade em 1995, quando a minha filha nasceu, a Vitória, e depois, há poucos anos, fiz uma cirurgia pequena de vesícula, nem cheguei a tirar licença. Então, para mim, foi um choque a doença! E descobri o quanto é muito importante que as mulheres se toquem.

Sempre fui muito rigorosa e sempre fiz todos os exames anuais. Eu os tinha feito em junho de 2019, e estava tudo ok. E, em março de 2020, eu toquei na mama direita durante o banho e vi que estava diferente. A gente conhece o nosso corpo, essa é a verdade. Quem se cuida percebe quando alguma coisa não está como sempre esteve. Em maio, eu fui na minha gineco, e começou a saga, a travessia.

A doença trouxe para mim a compreensão da finitude, de que não somos imortais, a compreensão de que mesmo com uma pessoa com boa saúde, como é o meu caso, pode acontecer.

Disse ao meu mastologista: “Mas eu sou uma pessoa com tão boa saúde, o que houve?” Aí ele me disse: “A tua boa saúde que vai te levar a enfrentar isso aqui da melhor maneira possível”. Eu optei por não contar para ninguém, exceto à minha filha e ao secretário-geral da presidência, funcionário do TRT 4, que é meu assessor direto.

Enfrentei a doença toda trabalhando. Eu recém tinha iniciado a presidência do TRT 4, eu entendia que, tendo a confiança dos meus colegas, tendo recebido o voto da maioria dos juízes substitutos, titulares e desembargadores, eu não poderia defraudar isso. Então, eu fiz essa opção, e a pandemia, nesse aspecto, me auxiliou, porque eu pude trabalhar dentro de casa, remotamente.

Eu tive um excelente tratamento, tenho convênio médico e fiz tudo o que foi recomendado. Fiz a quimioterapia (no início, a cada 15 dias, depois, semanalmente) de junho até outubro, sempre no final do dia, de modo que não atrapalhasse tanto as necessidades de trabalho. Depois, em novembro, a cirurgia. Felizmente, não precisou ser invasiva, foi só a retirada do que restava da doença. Então, fiz radioterapia, e agora, no final do tratamento, eu tomei uma medicação por seis meses, que terminou em agosto. E este ano eu resolvi contar essa história para animar as mulheres, para que elas saibam que a gente pode passar por esse deserto, enfrentá-lo e encontrar um oásis no final.

Eu sempre fui uma pessoa muito, muito envolvida com o trabalho, de trabalhar de dez a doze horas por dia, preocupada com as questões que envolvem todo esse mundo do trabalho. Fui gestora em algumas oportunidades, viajei o interior todo conhecendo as unidades judiciárias e fiscalizando o trabalho dos magistrados de primeiro grau. Depois, eu fui diretora da escola judicial, o que envolvia também a capacitação de magistrados e servidores, um universo de quatro mil pessoas no TRT. E agora, por último, fui eleita presidente do tribunal de 2019 a 2021. É insano, são milhares de demandas, licitações, compras, preocupação com a pandemia, fazer audiências, ajudar os magistrados a trabalharem dessa maneira e os advogados a compreenderem que essa é uma forma de trabalhar que permitiria a não disseminação da Covid-19. Então, uma presidência é sempre muito trabalhosa, e a minha foi mais ainda, tendo em vista a pandemia.

O que eu faria diferente na minha vida? Eu acho que eu teria um pouco mais de ócio no dia a dia, e menos preocupação, mas é tão difícil! Como tu te preocupas menos com as pessoas? Como é que tu te preocupas menos com o que tu precisas fazer? Não sei. Eu sempre fui sedentária, mas vinha fazendo exercícios há cerca de três anos. Eu tenho agora uma preocupação bastante grande com a saúde, no sentido de me alimentar melhor do que eu já me alimentava, e fazer terapia, e tentar levar a vida de uma forma um pouco menos estressada.

O que mais eu faria de diferente na minha vida? Acho que eu teria mais intervalos, entre um trabalho e outro, entre um dia e outro de trabalho, tentaria fazer as coisas de uma maneira mais leve. Porque quando a gente leva tudo muito à ponta de faca, muito exageradamente responsável, nós nos deixamos um pouco de lado, e acho que é importante ter intervalos, ter momentos em que nós fazemos outras coisas no cotidiano, durante o dia. Descansar, almoçar em casa com tranquilidade. Eu não sou da sesta, mas se pudesse, eu gostaria de dormir uns 15 minutinhos depois do almoço, mas nunca consegui ter esse hábito. Acho que a gente precisa… Eu preciso, eu considero que deveria agir de forma diferente nesse aspecto, tendo intervalos durante a rotina. Não vou mudar, mas tentar ser mais leve. Para o futuro, eu tenho isso que me salvou, segundo meus médicos: ter projetos. A gente tem que ter projetos, de trabalho, de lazer, de ócio, de vida. Eu pretendo fazer muitas coisas ainda, escrever um livro, plantar uma árvore, quero ver meus netos, quero viajar, conhecer ainda muitos lugares que eu não conheço no Brasil e no mundo, e quero continuar tendo tempo para os meus amigos, para os jurisdicionados, e pensar que ainda tem muita vida pela frente, e eu quero aproveitar tudo o que a vida venha a oferecer.

Leia também

Mais lidos