Vida

Comida é igual amor: todo mundo quer muito.

Nascida em um lar judeu, onde dar amor e comida são praticamente a mesma coisa, a escritora Cíntia Moscovich vive em guerra permanente contra a balança, derrotou um câncer e segue lidando com outras batalhas como o preconceito por ser mulher, pela idade e pela religião. Conheça algumas dessas lutas que foram temas de livros publicados e em andamento, e podem ser lidas a seguir em relatos bem-humorados, até mesmo sobre dolorosos acontecimentos da vida da premiada autora porto-alegrense

Quando a mãe de Cíntia Moscovich soube do lançamento de seu livro Por que sou gorda, mamãe? em 2006, ficou chateada, cheia de culpa, como boa judia, achando que se tratava de um relato sobre a relação das duas. Na verdade não é. A ideia surgiu de uma enquete feita com amigos judeus da escritora gaúcha sobre as situações mais constrangedoras e tristes que teriam vivido com suas mães. A obra trata sobre uma moça com problemas de relacionamento com a sua própria. Ao longo do tempo, sua dor começa a aparecer em forma de gordura e ela nem percebe engordar 22kg.

“A maior manifestação de afeto de uma mãe judia é enfiar comida ‘goela abaixo’ dos filhos. E os filhos vão engordando. A comunidade judaica deve ter o maior índice de obesidade do mundo”, ironiza Cíntia. Ela diz ser tal como um ato de amor e, mais do que isso, uma questão cultural. “Como os judeus viviam fugindo de um lugar para o outro, principalmente os do norte da Europa, tudo o que faltava para eles, além de condições dignas de moradia, era comida. Então, por exemplo, aqui no Brasil, a maior riqueza que podiam juntar era comida. Oferecer um prato de comida para um filho era uma satisfação”.  

Cíntia conta ter tendência à obesidade, assim como os irmãos Jairo e Henrique.

“Nós viemos da Rússia. Minha genética é para armazenar gordura, enfrentar invernos da Sibéria. Nos trópicos sobra muita gordura. Eu não preciso de tanto para enfrentar 30 graus na sombra, então, a vida inteira foi essa briga contra balança”.

O câncer é ridículo!

O próximo livro a ser lançado pela escritora porto-alegrense, jornalista e Mestre em Teoria Literária, indicada ao prêmio Jabuti e detentora de tantos outros reconhecimentos nacionais e internacionais por suas obras, será um relato autobiográfico. Segundo Cíntia, de uma situação ridícula de sua vida. “Tive câncer na amígdala com metástase e linfonodo, foi muito doloroso. Quando tive o diagnóstico, o médico disse: ‘tu estás com metástase, precisamos fazer biópsia, mas não há tempo de ir pro hospital. Topa fazer a seco?’“. Ela topou.

“Ele tirou um pedaço da minha garganta no consultório”. Ela conta que seu marido estava lá, acompanhando. Quando o procedimento teve início, o médico e Cíntia ouviram alguns passos, seguidos de um “plaft”. “Meu marido ficou apavorado. Fez a gentileza de sair do consultório para desmaiar lá fora. O médico estava cortando um pedaço da minha amígdala. E eu, assustada, comentei: ‘doutor, ele tem cardiopatia, ele morreu’. O médico disse: ‘deixa ele’”. 

“Meu marido tinha quebrado a patela em 20 mil pedaços na queda, na tentativa de não atrapalhar a biópsia. Eu estava com dois problemas. Uma cirurgia pra ser feita com urgência em duas semanas e um marido com a patela quebrada. O médico dizia: ‘Deixa esse cara se virar’. Depois que passa, é engraçado”, comenta Cíntia.

Tudo aconteceu há 12 anos e a doença foi superada. Mas só agora ela consegue colocar no papel o que viveu. “Literatura se faz com a lembrança. Na vigência da coisa, sai uma porcaria. Esteticamente, tu não podes produzir tão próximo do acontecimento. Fica muito emocional”, afirma ela. A escritora revela que na época não conseguia ler nem escrever. “No máximo queria sobreviver”, enfatiza e ainda brinca: “ah, minha mãe judia me levou comida no hospital. Mesmo sem um pedaço da garganta, ela me fez comer.”

Judia, gorda, velha e escritora

“Só falta ser negra e sapata para ser a mais segregada das segregadas”, ironiza, Cíntia. “O lugar onde a gente está, o Rio Grande do Sul, em termos de relações humanas é um dos mais subdesenvolvido do Planeta. Gosto de viajar em razão da literatura, que me proporciona isso. As pessoas impressionantemente valorizam muito isso nos outros países. Aqui, as pessoas têm comportamento muito retrógrado”. 

“Sempre lembro muito do Scliar. Graças a Deus que a gente pôde vir pra esse lugar do Brasil que nos acolheu, nos deu condições de trabalhar e de estudar. Eu digo a mesma coisa, minha família, como a dele, veio da Bessarábia, aqui a gente pôde trabalhar e estudar, mas que lugarzinho chumbrega. Aqui tu és tratado como cidadão de quinta categoria se tu tens mais de 50 anos. Ainda mais se tu és mulher, gorda e judia”, lamenta.

Sobre ser escritora, Cíntia comenta já ter sofrido muito preconceito. Acredita não ser uma profissão valorizada. “Já me senti muito maltratada. Acredito que seria diferente se eu fizesse sabonetes ou cadeiras, por exemplo. Eu não acreditava que poderia ser discriminada por ser mulher, até por circular entre pessoas da classe média, gente mais instruída, mas várias vezes acontece, especialmente no meio jurídico. Às vezes tenho vontade de chamar o marido só para ter respeito, ou penso que só a ignorância resolve”, conclui ela.

Aos 62 anos, Cíntia acredita ser vista como se não contribuísse com a sociedade em função do envelhecimento.

“Estou acostumada a ser segregada. Sinto que as pessoas passaram a falar comigo em voz mais alta como se eu fosse surda. Até pelos meus cabelos brancos. Pegam na minha mão para me levar até o caixa na farmácia. Me tratam como se eu fosse meio inválida.

Conversam com todo mundo, menos comigo. Se estou numa roda e começam a falar de sexo, olham pra mim e mudam de assunto, porque acham que sexo não interessa mais. Negócio de maluco”. Se isso, a deixa triste? Primeiro ela diz ficar apenas “puta da cara”, mas na segunda manifestação, aparentemente menos impulsiva, a resposta é sim. Com seu bom humor inabalável, ela diz: “não tem problema. Me junto com minha turma e vou ser feliz.”

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