Velhice, Vida

“Quase tudo sobre a minha mãe” o depoimento da filha, Thais, sobre Dercy Furtado.

A mulher que batalhou em nome do universo feminino e, hoje, faz 94 anos. Vida longa, Dercy!

Hoje Dercy Furtado faz 94 anos. E, para falar sobre ela quem melhor que Thais, a filha jornalista?

Thais fala da mãe, mas também conta a história da mulher que conheceu o pai, Jorge, e ambos fizeram uma dupla de políticos e batalhadores dos direitos das pessoas. Um homem que promoveu o desenvolvimento de Dercy. Para se ter uma ideia, Thais conta, que um dia Jorge viu Dercy fazendo geleia e disse “ geleia podemos comprar no armazém, tu tens coisas muito mais importantes para fazer”.

Dercy foi vereadora, em Porto Alegre, deputada estadual e foi uma das batalhadoras mais ferrenhas pelos direitos femininos. Levou ao Congresso Nacional o livro Cortando as Amarras, que entre outras reivindicações estava a aposentadoria para a dona de casa. A um senador que a questionou como as mulheres poderiam sair de sua dependência econômica dos homens, Dercy responde: “ trabalhando, como os senhores fazem. Trabalhando e recebendo um salário, como os senhores aqui no Congresso”.

Mas, vamos ao texto da Thais, uma beleza.

Fátima Torri, a editora

Quase tudo sobre a minha mãe

Thaís Furtado

Hoje minha mãe está de aniversário. Quando eu e meus irmãos chegarmos na casa dela para tomarmos café da tarde juntos, ela provavelmente perguntará: “Quantos anos eu estou fazendo mesmo?”. E nós seis vamos responder com entusiasmo: “94”. E ela repetirá esse número devagar, com uma entonação de espanto, noveeenta e quatro, acrescentando: “Que monte, né?”. Talvez você não esteja lendo este texto no dia de hoje, mas esta data ela não esquece. “Eu nasci em 22 de setembro.” E lembra muito bem do ano também, 1927. O passado parece estar bem presente na vida dela, e o presente é que escapa da memória. Não que ela esteja sem saúde. Ao contrário. Sobe e desce a escada com 20 degraus da casa no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, várias vezes ao dia, faz ginástica duas vezes por semana e só usa óculos para ler os jornais todas as manhãs. É só a proximidade de um século de vida que faz os acontecimentos serem muitos para ficarem guardados na cabeça. Certamente lembrar o dia do nascimento, ou da infância em Morungava, é mais importante do que saber o que comeu no almoço ou se já tomou os remédios.

Quando estivermos ao redor da mesa – ainda afastados uns dos outros por medo do coronavírus –, talvez ela comece a contar algumas das histórias que fizeram seu nome, Dercy Furtado, ficar conhecido no Rio Grande do Sul e até fora do estado. Minha mãe foi a primeira vereadora eleita de Porto Alegre, em 1972. E a paixão pela capital gaúcha começou no dia em que chegou na cidade, aos 12 anos, junto com a família. Quando ela parou no alto da Rua da Praia, tirou os sapatos que apertavam os pés – “Em Morungava a gente nem usava sapatos” – e ficou maravilhada com as vitrines, o bonde, as mulheres e os homens bem vestidos. Tudo muito diferente do mundo em que minha vó, Etelvina, era a única professora, e meu avô, Melíbio, agricultor. “Nenhuma cidade do mundo me encantou como Porto Alegre”, ela sempre diz. Nem Paris, nem Nova York, nem México, ou qualquer outro lugar que acabou conhecendo mais tarde a trabalho, como deputada estadual, ou acompanhando meu pai. 

Hoje, de carro, em menos de uma hora a gente vai de Porto Alegre a Morungava, mas, naquela época, levava muito mais tempo para percorrer os 45 quilômetros que separam o distrito de Gravataí da capital. Por isso dá para dizer que a família de minha mãe deixou o campo para tentar a sorte na cidade grande. O vô Melíbio, tímido e calado, saiu da roça para ser cozinheiro em um hotel, e a “vótelvina”, como sempre chamamos, braba e forte, passou a cuidar da casa. Os filhos mais velhos, Ary, Darcy e Acioly, logo conseguiram emprego. Minha mãe e sua irmã, Cecy, ainda eram pequenas.  Norcy era o nome da irmã que morreu ainda bebê, antes de minha mãe nascer. Os serviços de saúde onde eles moravam eram precários, tanto que minha vó usava plantas como remédio e pedia para minha mãe benzer a sua perna com uma lã de carneiro preto.  Até hoje ela lembra do versinho que dizia enquanto passava as folhas de oliveira e a lã nas pernas de sua mãe, em uma espécie de jogral com ela:

– Pedro Paulo, de onde vens?, minha mãe perguntava.

– Senhor, venho de Roma, respondia minha vó.

– Que notícias traz de lá?

– Tem morrido muita gente de “zipezipelona”.

– Pedro Paulo, volta lá, vai dizer a essa gente que, com a lã do carneiro preto e o óleo de oliveira, isso mesmo curarás.

Minha mãe acha que “zipezipelona” era a forma como chamavam erisipela naquele tempo, naquele lugar. Mas não sabe de onde surgiram essas benzeduras, as canções ou as brincadeiras que faziam no mato. Lembra que os dias de aniversário eram muito felizes, pois estava autorizada a bater na porta dos vizinhos anunciando que era o dia dela. Em troca, recebia um litro de leite de um, alguns ovos de outro, e corria para casa com os presentes para deixar a mesa mais cheia do que de costume. Hoje, certamente vai ter bolo, pão, suco, mais bolo e por aí vai, pois somos todos exagerados e cada um leva um monte de coisa, talvez para prolongar o tempo de papo e a troca de afeto em torno da mesa que anda meio vazia de gente com a pandemia.

A primeira casa de minha mãe em Porto Alegre foi na avenida Nova York, no bairro Floresta, perto do colégio Santa Clara, onde ela passou a ser aluna com uma bolsa de estudos concedida pelas freiras. Pela primeira vez, teria aulas com outras professoras que não a sua mãe. Mas a felicidade de estudar em um “colégio de verdade”, como ela chamava, não durou muito, mesmo ela sendo uma ótima aluna. “Minhas colegas eram muito ricas, e as saias delas eram rodadas. As minhas eram feitas de tecido barato. Na hora da merenda, eu me escondia para não verem que eu só podia levar um pão quase seco.” Talvez por isso ela fique braba quando qualquer pessoa coloca alguma comida, mesmo estragada, no lixo. “Colocar comida fora é pecado”, ela diz.

A blusinha verde da minha mãe

Aos 14 anos, sem condições financeiras de fazer o ginásio, minha mãe foi trabalhar no Laboratório Geyer produzindo ampolas. “Às vezes eu ainda ouço o apito da fábrica”, ela diz. A função de assoprar cerca de cinco mil ampolas por dia fez com que ela, que tinha apenas 48 quilos, acabasse tendo tuberculose. Conseguiu se curar, mas uma colega não teve a mesma sorte. “Naquela época eu nem sabia o que era injustiça social. Talvez por isso eu me revolte tanto hoje vendo poucos com muito e muitos com tão pouco.” Mas, quando ela completou 15 anos, surgiu o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, o Senai.  Todos os jovens trabalhadores teriam o direito de estudar. Como havia poucas vagas e muitos candidatos, ela teve que fazer um teste: “Tirei primeiro lugar, e ali eu estava feliz, junto com outras meninas pobres trabalhadoras como eu”.

Foi ali também, quando a professora preferida, Nídia Paganelli, se aposentou, que ela conheceu o professor de português Jorge Furtado. Eu poderia apostar que ela vai contar essa história hoje, porque, sem dúvida, é uma das favoritas dela: “A porta da sala de aula se abriu e entrou um jovem alto, magro, meio desengonçado, cabelo curto. Virei o rosto para a janela em forma de protesto. Eu adorava a professora Nídia. Aí ele pediu para cada aluna falar o seu nome e disse que, no final da aula, saberia o nome de todas, porque que tinha uma memória fantástica”. Ela achou ele muito convencido. Todas foram falando seus nomes, mas minha mãe continuava olhando para fora, até que ele perguntou: “E você, de blusinha verde? Qual o seu nome?”. Na hora, ela ficou com muita raiva, porque achou a blusinha verde muito surrada, velhinha. Mas respondeu: “Dercy”. Também naquele momento teve vergonha do nome, que era bem diferente dos das colegas. Mas, talvez, se não fosse aquela blusinha verde, ou aquela atitude de protesto, eu não estaria aqui hoje. E, se não fossem aqueles olhos verdes, eu não teria olhos verdes como os dela – a única entre os seis irmãos. A caçula, como ela.

Dois anos depois do episódio da blusinha verde, assim que minha mãe se formou no Senai, meu pai foi até a casa da avenida Nova York, de mapa na mão, e bateu na porta. Ela não acreditou: “É o professor Jorge!”. Aí sim ela ficou mais envergonhada ainda: “Nossa casa era muito pobre. E, eu não sei por que, o Ary saiu correndo e escondeu nosso cachorro, o Pititi”. Os dois conversaram na sala e, antes de ir embora, meu pai perguntou: “Posso voltar?”. Ela conta que quase desmaiou. E as visitas passaram a ser mais frequentes. Até que um dia ele a convidou para um baile de gala, de réveillon, no Petrópole Tênis Clube. Mas ela não tinha vestido para usar no baile. Então ele prometeu um vestido de presente de Natal, um vestido azul. E na noite de 31 de dezembro de 1945 os dois dançaram a Lagoa Adormecida, rodopiando entre os casais. “O meu vestido era o mais lindo”, ela garante.

Azul, vermelho, amarelo, verde. Uma das características da minha mãe é gostar de tudo colorido. As roupas dela são sempre chamativas, as unhas, sempre pintadas, tudo na vida dela tem cor. Ela também adora flores. O jardim da casa, que ela vê da janela do quarto, é talvez o lugar que ela mais ame atualmente. Só rivaliza com o próprio quarto, onde ela diz ter tudo que precisa, como a televisão, os livros, os rosários. Hoje, certamente antes começarmos a comer, ela vai dizer: “Vamos rezar?”. A pergunta será retórica, porque de imediato todos nós passaremos a rezar ou a cantar uma canção abençoando a refeição. Não que algum de nós ainda tenha o hábito de ir à igreja, e a relação com a religião é diferente para cada um dos filhos. Mas todos sabemos o quanto a religião católica é importante na vida da nossa mãe. Ela tem imagens de Cristo e de Maria espalhadas por toda casa e uma salinha em frente ao quarto que ela chama de santuário. É ali, entre vários santos, que ela mantém sempre uma vela acesa e reza diariamente para as quase 40 pessoas da família que construiu. Além dos seis filhos, são 14 netos, 11 bisnetos, fora as noras, genro, maridos e esposas dos netos e netas. E sempre pode sair ou surgir mais alguém. Acho que família é sempre assim. Ela reza também pelo meu pai, que já morreu.

Minha mãe sempre diz que o maior ensinamento que a vó deixou para ela foi o de saber rezar. Às vezes, no entanto, a religião foi meio perversa com ela. Quando foi ensinada que sexo era pecado, por exemplo, ou quando, bem mais tarde, defendeu que as mulheres poderiam se “desquitar” ou planejar os filhos que quisessem ter e foi duramente criticada pela Igreja. Mas ela sempre agiu de acordo com o que pensava. Aceita todos os credos, já colocou muita minhoca na cabeça de padres fazendo perguntas depois do sermão da missa e até, quando ainda era namorada do meu pai, usava algumas estratégias para confessar seus “pecados”. “Pra não dizer de novo pro mesmo padre que eu tinha beijado o Jorge, eu me confessava cada semana em uma igreja”, ela lembra rindo. Minha mãe é uma mulher de fé.

A mãe política

Tem uma frase que minha mãe sempre diz que eu acho muito verdadeira: “Cada filho é diferente e é filho de uma mãe diferente também”. E foi assim com ela. A mãe Dercy dos primeiros filhos era mais dedicada à casa, embora nunca tenha sido uma mulher pacata. Ela e meu pai participavam do Movimento Familiar Cristão, o MFC, e por isso tinham encontros, retiros e debates sobre vários assuntos com outros casais. Tem gente que diz que foi no MFC que ela se tornou política, mas o mais provável é que ela tenha começado a carreira ainda criança, quando minha vó fazia ela “discursar” nas festas de Morungava e das cidades vizinhas. Sempre que ela conta isso eu acho muito estranho. Ela, uma criança, decorava longos discursos, que, talvez até sem entender direito, depois repetia em casamentos, aniversários e outros eventos em cima de um banquinho. Todos os adultos paravam pra ouvir. “Não sei por que a mamãe fazia isso”, ela diz.

O certo é que, quando eu tinha seis anos, ela se elegeu vereadora. E também nunca entendi direito por que ela começou a vida política na Arena, um partido que defendia quase tudo o que ela atacava. Ela explica que, na época, recebeu o convite só da Arena. Aceitou. E não era comum, obviamente, um mulher ser candidata. Como diz meu irmão Jorge, minha mãe envelheceu para esquerda. Ainda como deputada, assim que foi permitido, ela deixou o PDS (ex-Arena) e passou para o PDT. Na ocasião, o Brizola, que ela admirava muito, foi na nossa casa. Foi um grande acontecimento. Minha mãe também admira muito a Dilma Roussef. Ela lembra que a Dilma, certa vez, quando trabalhava na Assembléia Legislativa, foi conversar com ela para ver se ela conseguia mudar a regra de que mulheres não podiam entrar de calças no plenário. Só eram permitidas as saias e os vestidos. Minha mãe começou a reivindicar a mudança até conseguir mudar a regra, que muitas vezes fazia, inclusive, que as mulheres passassem frio. Foi ela também que brigou para que tivesse um banheiro feminino no plenário.

Além da Dilma, minha mãe era muito amiga do Carlos Araújo, que foi colega dela na Assembléia. Lembro como ela ficou triste quando ele morreu. Minha mãe também admira muito o Lula, a Manuela d’Ávila, o Olívio Dutra e tantos outros políticos que não aceitam a desigualdade social do Brasil. E detesta o Bolsonaro. Mas a construção da vida da minha mãe na política foi acontecendo durante a minha infância e adolescência, ao mesmo tempo em que meu pai passou a ser vice-ministro e morar em Brasília, ficando às vezes longos períodos longe de nós. Por isso, a criação de meus irmãos mais velhos foi muito diferente da minha. O certo é que, independente de partido, toda a vida política da minha mãe foi marcada pela defesa das mulheres. Sempre com o estímulo e apoio do meu pai. Em um dos quatro livros que ela escreveu, Cortando as Amarras, tem na íntegra o discurso que ela fez no dia 18 de agosto de 1977 – quando eu tinha 11 anos – na Comissão Parlamentar de Inquérido, no Congresso Federal, que tratava da situação da mulher na sociedade brasileira. A fala, mesmo que com marcas inevitáveis do moralismo e do machismo da época, é de uma coragem impressionante.

Ela começa o pronunciamento defendendo a promoção da mulher, o que hoje a gente poderia chamar de empoderamento feminino. Minha mãe certamente foi marcada por ideias religiosas do mundo em que cresceu, mas eu sempre penso que, para que hoje existam tantas mulheres empoderadas, foi preciso que algumas precursoras dessem os primeiros passos. Nesse discurso, ela criticava o fato de as mulheres serem educadas só para o casamento, não entendia a razão de não poderem trabalhar fora de casa e acabarem sempre dependendo economicamente dos maridos e, por isso, fazia algumas sugestões para os deputados federais e senadores. Ela sugeria, por exemplo, mudanças da legislação trabalhista em relação às mulheres, sugeria que as donas de casa tivessem direito à aposentadoria – o que não acontece até hoje no Brasil -, pedia a ampla instalação de creches em todo o país, o salário mínimo e horário de trabalho para as trabalhadoras domésticas – isso em 1977! –, o acesso a métodos contraceptivos, a correção de textos escolares que discriminavam as mulheres, entre outras questões.

Ao final do discurso, ela foi sabatinada pelos parlamentares, todos homens. As perguntas são muito chocantes, e as respostas, muito bonitas. Um senador, por exemplo, perguntou qual a solução para resolver o problema de dependência econômica das mulheres, já que é “o homem que arca com todas as despesas da casa”. “Trabalhando, fazendo o que os senhores fizeram. Trabalhando e recebendo o seu salário”, ela respondeu, para depois lembrar que a realidade que ela via, muitas vezes e já naquela época, era a da irresponsabilidade paterna. De homens que deixavam as esposas sozinhas cuidando dos filhos. Foi com essas ideias que ela acabou conhecendo o mundo inteiro, quase sempre vivendo e discursando em lugares onde era a única mulher. Foi também com esse pensamento que ela decidiu fazer o curso de História quando já tinha 60 anos. Minha mãe é uma mulher corajosa.

Talvez ela não lembre bem desse pronunciamento no Congresso, talvez hoje para ela seja mais importante dizer como o Cláudio, o filho mais velho, sempre foi um ótimo jornalista; o Sérgio, um publicitário talentoso; A Nina, uma psiquiatra respeitada; a Maria da Graça – que mora com ela e hoje é a preferida – uma competente funcionária da Fasc, formada em Educação Física e especializada em Gerontologia Social; o Jorge – o famoso da família – , um cineasta brilhante; e eu, uma ótima jornalista e professora universitária. Certamente essa é a opinião dela, porque ela e meu pai nos ensinaram que trabalho é sinônimo de felicidade. E, mesmo que todos nós tenhamos todos os defeitos que todos os filhos têm, seremos sempre os melhores para ela. Os filhos, netos e bisnetos estão acima de tudo. E nós somos todos formados também por essas histórias que ela nos conta e vive com a gente. Hoje, os filhos vão tomar café com ela, mas no final de semana, toda a familiona vai se reunir na rua, com máscaras, com cuidado, porque todos querem ouvir mais histórias, mesmo as repetidas, porque sempre ela nos traz algo de novo. E por isso eu nunca poderia contar tudo sobre minha mãe, porque ela está constantemente em construção, mesmo aos 94 anos. Se ela tem medo da morte? “Sou contra a morte”, ela diz. Eu também. Sou a favor da vida, justa, sem desigualdade social, sem fome, sem miséria, sem milícia, sem rachadinha, sem corrupção, sem censura. Sou a favor da vida e do amor, como ela sempre me ensinou e continua me ensinando.

Um pouco sobre o meu pai

Tem uma história que minha mãe conta que diz muito sobre quem era o meu pai. No início do casamento, um dia ele chegou em casa e minha mãe estava no fogão. Ele perguntou o que ela estava fazendo. “Geleia”, ela respondeu. “Mas geleia dá para comprar no armazém, tu podes fazer muito mais do que isso”, ele disse. Ele sabia que não era aquilo que minha mãe queria fazer. Meu pai sempre foi assim: um incentivador. Quando eu nasci, ele trabalhava na UFRGS, como superintendente acadêmico. Era formado em Direito e em Filosofia. Do Direito, carregou o senso de justiça, mas a cabeça era de filósofo, sempre escrevendo, lendo, se questionando sobre o mundo. Tinha também habilidade de administrador.

Trabalhou como secretário geral dos Ministérios da Educação e do Trabalho. Ajudou a fundar várias fundações em Porto Alegre, entre elas a Fundação Televisão Educativa, a TVE, e a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a Ospa. Presidiu as duas. Como passou muito tempo morando longe de Porto Alegre, tive pouco tempo de convivência com ele, mas guardo boas lembranças. Ele tocando e cantando violão nos verões em Cidreira; no Estádio Olímpíco, onde eu o acompanhava nos jogos do Grêmio; e lendo suas poesias e crônicas na mesa enquanto almoçávamos. Talvez por isso eu goste tanto de cantar e tocar violão, de ler e escrever e de torcer pelo time que nos unia.   Gosto também de saber que hoje trabalho na UFRGS, onde ele estava quando nasci.  Em um de seus poemas, ele diz: “Quem tem ideias na cuca, ideias que fazem bem, e que melhoram a vida de quem ideias não tem, é bom sair da manada e entrar no rol da exceção. Nem só de pão vive o homem”. Meu pai brincou de exceção.

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