Trabalho, Velhice

As muitas vidas de Eliana Cardoso

São 77 anos, diferentes carreiras, prêmios e muitas vidas vividas. Conheça a economista, escritora, ilustradora e multi habilidades Eliana Cardoso, que não escolhe o momento mais feliz de “suas vidas” porque ainda quer ter muitos mais. Ela concedeu entrevista exclusiva à Fala Feminina.

Eliana Cardoso é imparável.  Mineira, economista de renome, sua primeira profissão, é também Doutora pelo prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. É autora de dezenas de artigos acadêmicos e de livros sobre a economia brasileira e latino-americana. Deu aulas em universidades americanas, trabalhou no Banco Mundial, no Fundo Monetário Internacional (FMI) e, por oito meses, no governo Fernando Henrique Cardoso. Voltou de vez ao Brasil em 2004, para lecionar na Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo.

A segunda carreira é a que leva no ecossistema literário. Em 2013, escrevia resenhas para o Valor Econômico. Em 2014, publicou o romance Bonecas Russas (Companhia das Letras), indicado ao Prêmio São Paulo de Literatura. Em 2016, lançou outro romance, Nuvem negra (Companhia das Letras). No ano seguinte, reuniu as resenhas publicadas no Valor Econômico no livro Sopro na Aragem (Córrego). Em 2018, lançou, na internet, o romance Dama de Paus, vencedor do Prêmio Kindle de Literatura.

A terceira investida profissional é como autora e ilustradora de livros infantis. Escolheu essa atuação por ser atraída e fascinada pelo mundo infantil. “Eu vejo na criança uma capacidade única de se interessar por tudo que a cerca, uma curiosidade sem fim, o prazer da descoberta, o pendor para brincar, a capacidade de achar graça e rir nas mais diferentes situações, a abertura para a alegria, a verdadeira alegria de viver.”

Ter se permitido, com 77, começar a ilustrar livros infantis, combinando partes de fotografias e desenhos, segundo ela, trouxe de volta a Eliana criança e revelou uma camada mais antiga da sua personalidade.

Ela viveu cinco casamentos. E, hoje, já não divide a sua morada: “Filho, neta e neto são lindas criaturas que alegram minha vida”, diz. 

O que mais Eliana sonharia viver após tantos feitos bem-sucedidos? A resposta foi possivelmente a mesma que você e eu teríamos dado:  “Nesse momento, o que eu sonho é com o fim da pandemia. Eu sonho com a possibilidade de conversar cara a cara com amigos e amigas, eu sonho em voltar a frequentar restaurantes, ir ao cinema, poder viajar, abraçar a família nas comemorações e nas festas de fim de ano. Ia ser bom, não ia?“.

Confira a entrevista  feita pela jornalista Fátima Torri,  idealizadora da Fala Feminina à Eliana Cardoso.

FF: A escritora sempre esteve dentro de ti? Teve algum momento em que querias sair da vida racional da economista, dos cargos, da correria e tu sonhavas ser como Lillian Hellman,  no filme Julia, em que ela vai para praia em uma casa afastada para entrar dentro de si mesma e escrever? A escritora dentro de ti é uma camada como um pentimento?

Eliana: Você me pergunta se a escritora sempre esteve dentro de mim e menciona o filme Julia, que valeu um Oscar a Vanessa Redgrave no papel de Julia e tem Jane Fonda no papel da escritora Lillian Hellman. Lembro-me vagamente do filme e da história de Julia que teria pertencido ao movimento de resistência contra os nazistas e seria amiga de Lilian. O importante para mim é a lembrança de uma Jane Fonda um tanto histérica no papel de escritora. Essa lembrança me afasta dessa personagem, mas me traz à mente minhas temporadas na casa de praia do meu filho e das caminhadas na praia que sempre me serviam para um mergulho dentro de mim mesma. 

Voltando ao filme, sei que ele se baseia em um capítulo do livro Pentimento que nunca li, mas quando você traz o tema do pentimento à baila, sua pergunta me sugere um bom número de associações. A primeira ideia é de que somos, na velhice, como um pentimento, isso é: como os vestígios de composições anteriores, que se tornam visíveis com a passagem do tempo. Essa ideia me atrai porque sugere que a velhice revela em nós a criança que existia muitas décadas atrás e que se achava escondida por camadas que vão se desfazendo.  Se a ideia procede, então, a velhice despertou em mim a criança que teria desejado desde sempre ser escritora. Na verdade, não tenho consciência de que em criança este tivesse sido o meu desejo, o que a criança adorava era desenhar e fazer colagens e é exatamente isso que ando fazendo agora. 

Outra ideia que sua pergunta sugere ao ligar uma virada na vida a um estágio anterior que teria ficado camuflado por estágios posteriores, é a ideia de que: ao longo do tempo a imaginação atua sobre o passado e o transforma, a memória que escondeu camadas passa a recuperá-las. Mudamos os cenários antigos e encontramos neles outros significados, da mesma forma que um pintor pode pintar sobre uma cena ou sobre uma figura da mesma tela, nos vemos na velhice e até mesmo antes dela reinterpretando nossas vidas com nossa memória seletiva. Essa ideia, ao mesmo tempo me assusta e me alegra, me assusta porque nos leva a perguntar se temos um eu permanente, será que somos feitos apenas de camadas superpostas? Será que uma delas é mais autêntica do que outra por ser mais antiga? Não sei a resposta, mas me alegro porque as possibilidades de novas vivências nunca se esgotam já que o livro de camadas, que somos nós, só se fecha depois de nossa morte.

FF:   O que significa para ti ser mulher?

Eliana: Ser mulher é ser um ser humano. Sempre recusei a tradição milenar de que as mulheres formam um grupo, que existe para servir a outro grupo superior, formado pelos homens. Essa submissão que existe ou existiu durante milênios, me faz pensar em três livros que tem como um de seus aspectos mais importantes a ideia do que estou chamando de submissão. O prêmio Nobel Kazuo Ishiguro retratou grupos criados para servir outros grupos em três livros: no seu livro mais recente “Clara e o sol”, a narradora é parte de um grupo de robôs criados para servir de companhia a crianças privilegiadas para que elas não sofram de solidão. O mesmo tema aparece em dois livro anteriores de Ishiguro, “Não me abandone jamais”. Existe um grupo de pessoas criado especificamente para ter os seus órgãos extraídos para serem substituídos nos órgãos de grupos privilegiados. E o terceiro livro de Ishiguro, que é o mais antigo deles e que também traz a tona o tema da submissão é o livro “Vestígios do dia”, em que um mordomo serve fielmente ao seu patrão.  

Eu estou consciente que estes três livros estão sujeitos a muitas leituras e interpretações diferentes, o que eu quero dizer é que o que chama a minha atenção e o que eu vejo de comum em todos eles é esse conjunto de seres que se sujeitam a servir a um outro grupo e o que o Ishiguro consegue fazer é retratar esse grupo de pessoas ou robôs submissos como seres muito afetuosos, como seres muito inteligentes, dotados de uma enorme sagacidade em relação aos outros seres que eles servem e eu acho possível fazer um paralelo entre esse retrato da submissão no livro de Ishiguro com o retrato da submissão das mulheres pelos homens. 

Eu acho que a minha atitude vem de muito cedo, desde o tempo em que eu era adolescente e eu tenho consciência de que essa inconformidade se tornou cada vez mais comum através da história. Ela vem à tona de forma muito forte na segunda metade do século 20, quando as mulheres ganham o direito ao voto e depois que a segunda guerra tinha forçado a aceitação das mulheres no mercado de trabalho. Agora, eu acho que esta inconformidade está cada vez mais viva, no movimento feminista, e apesar disso a sujeição milenar deixou uma espécie de marca no inconsciente feminino, de forma que muitas vezes nós nos vemos diante de conflitos que talvez não estejam presentes no caso dos dominadores, mas não sei, eu sei que eu me vejo como um ser humano antes de me ver como uma mulher.

FF: E a velhice? Onde te dói?

Eliana: Bom, eu acho que ela dói no fato de que os hormônios mudam, a libído adormece e uma vez a libido adormecida nós temos muito menos interesse no namoro e o namoro foi uma coisa muito divertida na vida da gente não é? É uma pena que ele já não esteja mais presente.

FF: Qual o momento da tua vida que sentes que foste mais feliz?

Eliana: Eu gosto de pensar que eu não estou ainda na hora de definir o momento em que eu me senti mais feliz. Eu tenho a esperança que eu terei momentos de grande alegria pela frente e que se eu declarar agora que eu estou pronta para escolher o melhor momento da minha vida, é como se eu estivesse declarando que a minha vida acabou. Eu vou esperar para responder essa pergunta no momento em que eu estiver me despedindo da vida, ainda tenho muitas alegrias para viver.

FF: Tu gostarias de ter sido também cineasta? 

Eliana: Eu adoro cinema, mas ser cineasta nunca fez parte de verdade de meus projetos, eu acho que eu não ia querer trocar o lazer que mais me entretém por horas de trabalho. Eu prefiro continuar uma fã de cinema, apreciando os filmes que os outros fazem.

Sobre diretoras mulheres, eu acho que Lina Wertmuller era formidável e inovadora, mas hoje existem muitas outras diretoras importantes, eu poderia citar: a Anna Muylaert com “O ano em que meus pais saíram de férias” e também com outro filme espetacular “Que horas ela volta?”, eu poderia citar a Sofia Coppola e o seu “Lost in translation” que é uma comédia deliciosa e mais recentemente nós temos a Nadine Labaki que fez o “Cafarnaum” um grande filme, muito muito bonito. 

Agora, a lista dos diretores homens que me deixam sem ar, bom… essa lista é grande demais e eu vou ter que fazer algumas escolhas. Então, eu vou escolher dois diretores que já morreram: um é Bergman, um machista conhecedor da alma feminina e o outro é, eu acredito, talvez, o maior gênio do cinema, o Akira Kurosawa, que talvez não seja muito fácil de encontrar nas plataformas de streaming hoje em dia mas os filmes dele estão disponíveis na Criterion Collection, eu tenho alguns que eu adoro. Ele adaptou duas peças de Shakespeare ao contexto japonês, ele adaptou o King Lear no filme “Ran”, filme belíssimo e adaptou Macbeth no filme “Throne of Blood” que também é uma beleza de filme, mas dos filmes dele, o que é o meu predileto é o filme que se chama “Rashômon” e que explora a natureza da verdade e da justiça, é um filme que ninguém pode deixar de ver, recomendo muito. 

FF – O que é o casamento pra ti? 

Eliana: O casamento sempre foi muito importante na minha vida, eu sempre gostei de ter um companheiro com quem dividir o dia a dia, eu me casei cinco vezes. Se voltasse atrás o que eu faria de diferente é que eu teria sido mais tolerante, mais flexível e mais carinhosa. Por outro lado, se você é tolerante e perdoa, esse perdão tem que ser verdadeiro, porque se ele não é o casal vai acumular ressentimentos e o ressentimento, eu acredito, é o que torna a vida a dois terrível. Eu acho que são muito raros os casais que conseguem chegar juntos à velhice sem ter acumulado ressentimentos e que conseguiram desenvolver uma sintonia que os tornam excelentes companheiros. Eu invejo esses poucos casais que construíram uma relação onde eles se tornaram um para o outro a mais desejável das companhias, eu não tive essa sorte, não me coube esta alegria.

FF: Atuar no mundo masculino enquanto economista foi muito difícil? 

Eliana: Não foi difícil trabalhar no mundo masculino, eu tive muita sorte. Eu fiz a minha carreira na costa leste do Estados Unidos onde as pessoas são liberais, são progressistas, são abertas e mais do que isso: a minha carreira foi feita no mundo acadêmico da costa leste americana, onde os acadêmicos se sentiriam embaraçados por demonstrar qualquer preconceito contra as mulheres, não me senti discriminada por ser mulher em nenhum momento ali nos Estados Unidos. Quando fui para o Banco Mundial, já havia claramente um processo de favorecimento na contratação de mulheres e na busca de ajudar as mulheres a subir na hierarquia do banco. Eu não posso me queixar, realmente não posso, quando voltei para o Brasil em 2004 a FGV de São Paulo me recebeu de braços abertos e embora eu tenha me aposentado em dezembro de 2013, eu ainda hoje tenho na FGV autores e amigos muito fiéis. É uma alegria ter convivido no mundo dos economistas, que era um mundo tão masculino tempos atrás, mas que hoje cada vez mais admite a presença de mulheres.

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