Referência em alfabetização no Brasil, a educadora e ex-deputada federal Esther Pillar Grossi desfruta de seus 84 anos com vigor físico e intelectual de quem já sentenciou que a morte só poderá bater-lhe à porta aos 115 anos. Até lá, ela tem muito o que fazer
Quando se rompe a barreira dos 80 anos, a tirania dos estereótipos da velhice reserva à vida descanso, resignação e até certa soberba. Como se entregasse aos velhos uma norma do viver o fim, além de uma teimosia caricata. Esther Pillar Grossi não seguiu essa etiqueta e, aos 84 anos, mantém uma rotina que até pouco tempo atrás incluía subir o Morro da Cruz, na periferia de Porto Alegre, para alfabetizar jovens e crianças pobres.
Esther ainda cozinha, namora, estuda, promove aulas públicas, escreve artigos e posiciona-se quanto aos rumos da Educação, área em que se tornou referência por conta de seus estudos em alfabetização e pelo desenvolvimento de teorias ligadas à aplicação do pós-construtivismo. Nem cansaço, nem resignação, nem soberba rondam a velhice de Esther, cuja saúde invejável é sintoma da vida propositiva e feliz que decidiu levar.
“Não tomo nenhum remédio. Acho que doença tem 50% de psicológico. Anos atrás, quando eu estava na secretaria (municipal) de Educação, levamos 13 crianças a Paris. Meu marido era médico (o pediatra Sérgio Grossi, falecido em 2015) e foi junto. Levou remédios por prevenção, mas nenhuma criança adoeceu. Quando voltamos, várias televisões entrevistaram os alunos. Perguntaram a um menorzinho se alguém havia adoecido. Lembro da carinha dele, surpreso com a pergunta. Aí, ele disse: ‘não, eu acho que quando a gente tá feliz não adoece’. É como eu estou”, diz.
Não tomo nenhum remédio. Acho que doença tem 50% de psicológico
Uma presunção de que a educadora e ex-deputada federal pelo PT (1995-2002) não abre mão é despedir-se da vida, sem rodeios, aos 115 anos. Para acertar neste cálculo, faz exercícios com regularidade, sob a orientação de uma fisioterapeuta, come o que bem entende – e os caprichos à mesa podem até incluir um cálice de vinho pela manhã – e não deixa de estudar sobre a educação e o mundo. Na última Feira do Livro de Porto Alegre, levou para casa um exemplar sobre conectividade e internet. A curiosidade aguçada se sobrepõe ao colorido dos cabelos, uma marca registrada desde 1992, quando começou a colorir as madeixas e deixar para trás a monotonia dos fios castanhos.
“Uma única vez, como deputada, eu disse ‘não vou pintar mais’. Descolori e fiquei com a minha cor. Quando cheguei na Câmara, foi um protesto, quase fizeram abaixo-assinado. Diziam: ‘não faz isso, a gente já está acostumado!’, ‘não, não pode, tem que pintar!’. Depois, minha família, meus filhos, meus netos também pediam para eu voltar a pintar.
Aprender é mais do que se informar
O colorido que enfeita os cabelos e as roupas deu o tom a tudo que Esther se propôs como desafio. Formada em Matemática, doutora pela Universidade Sorbonne e fundadora do Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação (Geempa) de Porto Alegre, dedicou-se às pesquisas sobre educação para combater o analfabetismo no Brasil. Apostou no método pós-construtivista como ferramenta de aprendizagem e percorreu o mundo para ensiná-lo e aplicá-lo, na obsessão de ver todas as crianças alfabetizadas adequadamente. Para Esther, a aprendizagem permeia a dimensão social e não pode se afastar dela: “aprender é bem mais do que estar informado, é raciocinar” diz.
A obstinação pela educação norteou a vida política de Esther. Antes de ser deputada federal, foi secretária de Educação de Porto Alegre (1989 – 1992) e chegou a ter seu nome vislumbrado como ministra da área. Nome histórico do PT, saiu do partido após o escândalo do mensalão. A luta política manteve-se na dedicação direta a alfabetização de crianças pobres. Esther está velha demais para não fazer nada.
Desafiando a temporalidade
Esther Pillar Grossi nasceu em Santa Maria. É a nona de 10 filhos. Os pais viviam perto de São Vicente do Sul, município também na Região Central onde ela ainda conserva uma casa de campo. A morte precoce do pai, Adolpho Pillar, aos 50 anos, quando a educadora tinha apenas 4 anos de idade, resumiu a convivência com a figura paterna.
Mas a temporalidade da vida não a impediu de ser “fotografada” aos sete anos ao lado do progenitor. A imagem decora um dos espaços da casa em que Esther vive há 60 anos no bairro Mont’Serrat, em Porto Alegre. “Eu tinha somente fotos em grupo com ele, mas sozinha, não. Aí, meu irmão tinha uma foto, dessas tiradas na rua, e eu tinha outra, do mesmo fotógrafo, com a minha irmã. Eu, ela e mais uma pessoa. Então pedi para o fotógrafo fazer uma montagem. Meu pai era lindo.”
A identificação com o pai já vinha pelas semelhanças físicas. De todos os 10 filhos, era a única parecida com o pai. Ser diferente já se apresentava como comum da vida para a educadora. “Nasci diferente. Minha mãe tinha um DNA tão forte, que nove filhos eram parecidos com ela, e eu, parecida com meu pai. A única parecida com meu pai”, conta, sem esconder certo orgulho pela singularidade.
O carinho às origens ajudou Esther a sustentar o apreço pelo mundo, assim como a união de quase 50 anos com Sérgio Grossi, com quem teve quatro filhos. Um deles morreu poucas horas depois do nascimento.
Acho que na medida em que tu viveste bem, o final é prazeroso, te dá muita satisfação, te libera.
No ambiente familiar, a educadora também se empenha nas aventuras culinárias, cuja paixão extrapolou para a publicação de um livro de receitas Mesa Sutra e para outra irreverência que a popularizou: as torres de merengues. Com a guloseima, Esther adentrava eventos, presenteava afetos e adoçava encontros políticos e de educação. O hábito de preparar receitas e criar na cozinha não esmorece com o tempo. Batizou uma de suas recentes invenções de “Bába da Esther”, um doce à base de mamão e ao sabor dos anos temperados pela experiência. Para ela, são esses anos da velhice os mais especiais.
“A vida é uma corrente, tem uma continuidade. Se tu vais resolvendo teus problemas, fica melhor. Já criei os filhos, já escrevi muitos livros, já plantei árvores. Sou muito mais disponível para vida agora do que quando eu tinha 30 anos. Com 30 anos, eu tinha muitas incertezas. Hoje, estou tranquila. Acho que na medida em que tu vives bem, o final é prazeroso, te dá muita satisfação, te libera.”