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Abram alas que as gurias querem passar

Conheça um bloco que não anda só com a diversão, mas leva às ruas de Porto Alegre reflexões profundas sobre o papel da mulher no Carnaval, machismo estrutural e outros temas.

Foto: Larissa Kafruni (@historiasdonascer)

As mulatas exuberantes com seus corpos esculturais. As louras estonteantes com seus corpos também esculturais. As fantasias sob medida para o desejo. A alegoria que coube às mulheres no Carnaval sob o ritmo de uma sociedade machista começa a perder o brilho.
Elas não querem mais ser apenas o escultural exuberante na maior festa popular do mundo. O rebolado é outro, o enredo é mais profundo, e blocos e agremiações, ano após ano, têm levado a ruas e avenidas do país uma reflexão sobre o papel das mulheres na folia

No quesito evolução, ainda há muito a ser feito. Em 2020, uma pesquisa realizada pelo Ibope de forma online em razão das restrições da pandemia mostrou que 48% das entrevistadas já havia sofrido algum tipo de assédio, importunação sexual ou constrangimento em festas de Carnaval. Entre as mais jovens, de 16 a 24 anos, esse percentual saltou para 61%. Por conta dessa realidade, blocos e grupos de Carnaval estão levantando o estandarte da conscientização sobre o respeito às mulheres. E não se trata somente de esclarecer que a pouca roupa na folia não significa autorização para tocar,
beijar, importunar. É sobre feminismo, machismo, racismo, violência, acolhimento, identidade e igualdade.

Foto: Larissa Kafruni (@historiasdonascer)

Em Porto Alegre, o bloco Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só é um dos grupos carnavalescos que se propõem a combinar diversão com reflexão social e cultural. Formado somente por mulheres, o Não Mexe Comigo abarcou, inicialmente, aquelas que não se sentiam representadas e acolhidas em outros blocos, principalmente nos espaços da bateria, onde os homens tradicionalmente são maioria.

Aqui a gente se sente protegida, não tem essa de tu não sabe tocar, tu toca mal. Todo mundo se ajuda. E não é só na música, é na vida. Eu vivi um momento muito difícil e fui acolhida. É sobre esse acolhimento que estamos falando também – diz a técnica de segurança do trabalho Carine Brazil de Camargo, 29 anos, regente e caixeira do bloco.

Decisões democráticas

Foto: Benedictas Fotocoletivo

A ideia do bloco foi ventilada em um grupo de redes sociais pelos idos de 2016 e depois debatida em um encontro na rua. Na velocidade de um viral, ganhou integrantes muito rápido. O nome faz referência a uma música de Maria Bethânia, mas também a uma situação relatada por duas integrantes do grupo que, em uma noite retornando para casa, no bairro Cidade Baixa, foram perseguidas por um homem e se mantiveram unidas e firmes contra qualquer investida de violência ou importunação. De lá para cá, não só a temática do que cantam e performam nas ruas priorizou as questões ligadas ao feminismo, machismo e suas consequências, como o bloco também se propôs a ser estruturalmente diferente do que se percebia na maioria dos coletivos carnavalescos.

A comunicadora Joana Oliveira de Oliveira, cantante no Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só explica que todas as decisões são tomadas coletivamente, sem que haja uma hierarquia de poder. Nenhuma integrante deixa de ter sua opinião considerada quanto aos passos e ações do bloco. Isso não significa “alalaô” na direção. Foram criados grupos de trabalho temáticos, os GTs: GT Planejadas, GT Arranjo, GT Artístico GT Vendas, GT Financeiro, GT Comunicação, GT Formação. Todos eles integram o grande grupo chamado GTzudas.

Claro que nem sempre é fácil fazer um processo democrático, com a participação de todos. Tem momentos difíceis, mas a gente tem conseguido levar nossas decisões dessa forma, respeitando a participação de cada uma – diz Joana.

O terror nas ruas

Foto: Benedictas Fotocoletivo

Mulheres na percussão, mulheres nos tambores, mulheres nos instrumentos que elas quiserem. Podem também não estarem nos instrumentos, mas nos grupos de coreografias e intervenções, que, no Não Mexe Comigo, formam um naipe específico, o Terror. São as integrantes que usam o corpo como instrumento e montam performances nas saídas do
bloco, as chamadas “terroristas”.

Esse nome surgiu quando uma integrante do nosso coletivo, ao ser perguntada sobre o instrumento que tocava, respondeu que “tocava o terror” – relembra a jornalista Laura Franco, integrante dos tamborins.

Foto: Benedictas Fotocoletivo

Esse “terror” não fica restrito às performances. Os arranjos e as composições nas versões que elas batizaram de “Não Mexers” são a identidade do grupo. Trazem questionamentos e instigam no público, principalmente o masculino, reflexões sobre a estrutura patriarcal da
sociedade e sobre o comportamento masculino nesse contexto de desconstrução da desigualdade de gêneros e sexismo.

Esses temas são uma característica nossa. Talvez por isso, não tenha muitos homens acompanhando as nossas saídas. Porque a gente coloca na diversão uma reflexão forte sobre esses temas – avalia Laura.

Neste ano, o Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só está programando sua saída às ruas de Porto Alegre para o começo de maio, na “Rótula das Tetas” – Av. Aureliano de Figueiredo Pinto. Será o retorno depois de três anos com o bloco em casa por conta da pandemia. A expectativa por essa retomada tem ganhado as atenções do grupo, que, por enquanto, não definiu como se dará a aceitação de novas integrantes.

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