Trabalho, Vida

Romântica ou insana? Iara Dupont traz novo olhar sobre a paixão dramática de Romeu e Julieta

Quanto há de Julieta em nós?

Todo homem tem um pouco de Romeu? Louco, turbulento e avassalador? Ou toda mulher teria a submissão e a ilusão de Julieta? Talvez não dê para generalizar, mas que existem muitas histórias parte românticas e parte trágicas, tristes e surreais, disso Iara Dupont tem certeza. Várias ela testemunhou na própria família. E chegou a cogitar: teriam sua mãe, tias e avós sido amaldiçoadas com sofrimentos de amores insalubres?

Ao relatar as dores das gerações passadas em um blog, recebeu muitas outras histórias de mulheres. Esse tipo de situação era mais comum que imaginava. Por estudar Romeu e Julieta, de William Shakespeare,  a escritora, atriz e tradutora leu nesse amor a insanidade. Motivo pelo qual, para não revelar os nomes reais dos personagens das histórias que recebia, passou a mencionar os tantos homens e mulheres sobre quem escreve como Romeus e Julietas.

Você confere mais detalhes sobre as percepções de Iara Dupont em entrevista exclusiva para a Fala Feminina.

FF: Quem é a Iara Dupont e o que ela faz?
Iara: Eu sou escritora, escrevo desde pequena, é realmente um impulso. Há onze anos eu comecei um blog com histórias das mulheres da minha família, da problemática que elas viviam. E, conforme eu fui escrevendo, as mulheres começaram a me mandar as histórias delas.

FF: Mas este blog iniciou falando somente das experiências da tua família?
Iara: Sim, eu tenho muitas mulheres na minha família e quase todas elas tiveram o mesmo problema com os homens. Eu achava que era exclusivo do meu núcleo familiar e pensava “gente, acho que alguém jogou um feitiço”. Porque eram coisas que passavam por várias gerações e eu via que eu cometia os mesmos erros da minha mãe e da minha vó, por isso eu achava que tinha alguma coisa ali. Comecei a escrever realmente acreditando que era alguma nuvem cinza em cima da minha família. Porque eram relacionamentos com homens descompensados e agressivos, de um jeito ou de outro. Não tive uma visão de “deixa eu ver se acontece lá fora”. Mas conforme eu fui escrevendo, as mulheres começaram a responder nos comentários do blog e me contar histórias muito piores do que as próximas a mim.

FF: Tu escrevia as histórias sozinha?
Iara: Sim, e com o tempo eu fui recebendo as histórias de outras mulheres. Eu não escrevia o nome de ninguém, para deixar anônimo, e foi aí que eu resolvi que tinha que usar Romeu e Julieta.

FF: E qual a razão desta analogia?
Eu fui percebendo que todos os homens são um pouco Romeu. Se você olhar a história de perto, ele é completamente descontrolado, ele causa todos os problemas. Quando conhece a Julieta, está indo a uma festa atrás de outra garota e não da Julieta. Mas aí ele se encanta por ela e esquece da outra. Isso já é um sinal do quanto ele era descompensado. Daí pra frente, ao se apaixonar pela Julieta, briga com o primo dela, mata um primo, mata um amigo, vai causando muitos problemas. E a Julieta não é inocente, mas é iludida. Então, escolhi o nome de Romeu, porque eu achei que representava bem essa loucura masculina de entrar na vida da mulher como um furacão e ir arrastando-a até aquele fim que a gente conhece.
Eu analisei muito esta peça porque eu trabalhei com ela anos atrás. Quando a gente assiste a primeira vez está tão encantado que pensa “nossa, o Romeu é romântico mesmo”. Mas se lemos a peça com atenção, percebemos como o Romeu é muito louco. Por isso, comecei a usar o nome de Romeu em todos os homens e para todas as mulheres Julieta, que são iludidas e vão atrás da ideia do amor.

FF: Os homens não vão atrás da ideia de amor?
Iara: Sinceramente, não. Em parte, pela nossa socialização, quem vai atrás da ideia do amor é a mulher. O homem vai atrás da ideia do sexo primeiro, depois a aventura, depois a conveniência. Esta disposição para amar desde o começo é direcionada para nós, mulheres. Tanto que você vê como somos incondicionais. Quando a gente ama, a gente ama. Os homens não. Eles têm uma socialização mais violenta, claro, mas sempre direcionada aos interesses deles. Seja sexo, sejam conveniências…

FF: Ou seja, eles estão sempre procurando alguém que cuide deles.
Iara: Sim, porque a estrutura patriarcal coloca isso: é preciso você cuidar de alguém para que essa pessoa possa se lançar ao mundo. Eu, por exemplo, arrumo a minha casa, lavo a minha roupa… Se eu tivesse um homem para fazer isto para mim, eu passaria o dia inteiro escrevendo. No começo de uma sociedade capitalista era necessário as mulheres em casa para que os homens pudessem trabalhar dez horas fora de casa. Se eles tivessem que planejar o dia deles com o trabalho e tarefas como levar uma criança na escola, ir ao supermercado, passar no banco, na farmácia… Depois chegar em casa, limpar, coloca a roupa para lavar… A gente perde quatro ou cinco horas por dia nessas tarefas. É necessário que essas coisas sejam feitas e eles sabem disso, é conveniência, o homem tem esta visão do casamento. Tanto que eles dizem “agora vou ficar tranquilo”.

FF: Pois é, mas eles não ficam tranquilos, né?
Iara: Eu acho que tranquilos emocionalmente sim – quando eles gostam da mulher, – mas nunca sexualmente. Eu sempre falo para as garotas: é importante que a gente perceba que o significado de traição não é o mesmo para a mulher e para o homem na nossa socialização. Para a mulher, ela trai e é uma vadia, uma mulher inaceitável na sociedade. Já o homem trai e todo mundo diz : “homem é assim, é isso que acontece, é da natureza do homem”.

FF: Os homens não se separariam nunca, não é mesmo?
Iara: Nunca, não é conveniente e eles nem querem, emocionalmente falando. Têm muitas advogadas que me seguem e elas dizem que 80% dos divórcios é a mulher que pede. Por isso que dá tanta briga e problema, porque eles não querem ir embora. Eu tenho casos de mulheres que me escrevem que o homem está dormindo no sofá por não querer sair de casa. É muito ruim e muito complicado esse assunto. Para os homens, casamento é isso, é a vida boa.

FF: Com o blog, percebeste que não era só tua família que era louca, todas as nossas são. Tolstói disse “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira”.
Iara: Eu não tinha menor ideia do sofrimento das mulheres, eu realmente não imaginei que as coisas pudessem estar no ponto que estão. Tive uma sorte de viver numa bolha de certa maneira. Eu pensava que o sofrimento era pontual, até que eu comecei a perceber que a socialização permite uma situação de maus tratos constantes para a mulher. Nós temos muito claro que o abuso pode ser físico e pode ser sexual. Nos últimos tempos, já se fala de abuso psicológico. Mas eu cresci num ambiente de homens – como meu avô e meu pai – que eram um pouco nervosos demais. Nunca bateram, nunca agrediram, mas xingavam, batiam porta… Hoje eu percebo que isso também são maus tratos. Todo mundo tem seus chiliques, eu tenho os meus também. Mas sempre tem uma imposição masculina que maltrata, mesmo que não bata, mesmo que não estupre. Foi isso que eu comecei a perceber com a convivência com esta socialização que ficou muito doentia.

FF: Eu sinto que os homens estão muito sós hoje. As mulheres estão sós, mas os homens também estão perdidos. E aí, qual é a saída?
Iara: Eu falo muito da socialização relacionada à mulher, mas eu nenhum momento eu digo que a socialização masculina é boa, ela é horrorosa e violenta. Os homens são extremamente violentos e a socialização masculina é uma agressão à humanidade. É claro que isso vai causar sofrimento, porque a maioria dos meninos são “triturados” na infância. É uma tristeza, mas temos um problema: dentro da socialização masculina foi criada uma bolha de privilégios. Apesar da violência, apesar de tudo. Hoje é muito complicado porque os homens não querem renunciar a este privilégio e é preciso que eles analisem este sofrimento que eles causam e os sofrimentos que eles estão passando para que a gente possa sentar e começar a pensar no relacionamento. E eu não falo de relacionamento amoroso só, eu falo de relacionamento profissional, social… É preciso “reestruturar de novo” para acabar com estes maus tratos que são constantes e realmente causam bastante sofrimento. Eu não tenho visto esta disposição dos homens. Eu recebo mensagens de homens e, apesar deles assumirem o sofrimento, eu não vejo um posicionamento para mudar alguma coisa. Não sei se falta uma liderança ou escritores que começassem a falar do assunto para repensarmos a socialização de todo mundo.

FF: Tu usa muito a palavra “socialização”…
Iara: Sim, porque é muito importante tirar da esfera pessoal. Quando eu falo, por exemplo, que eu sou contra o casamento, as pessoas acham que é uma experiência minha. Eu nunca me casei, eu morei com namorado, mas casar na igreja eu nunca casei. Fica parecendo que eu falo a partir da minha experiência e, na realidade, claro que tem a bagagem da minha experiência, mas a base é como nós fomos socializados. Eu tive muita sorte de crescer num ambiente com acesso a livros e a cultura, mas nunca ninguém me falou que homens foram ensinados para isso e mulheres foram ensinadas para aquilo. Então, como eu não sabia, eu bati de frente com muitas coisas, foi muito sofrimento. Eu gostaria que tivessem me dito trinta anos atrás como funciona a socialização para que eu pudesse, dentro desta esfera, me defender. Porque a gente fica muito exposta por não saber. Se tivessem me dito: “olha, quando você for num profissional de saúde, procure uma mulher, porque acontecem abusos com médicos homens”. É importante que as pessoas conheçam e entendam o processo de socialização, porque só a partir disso a gente vai poder mudar a situação. Ela não é uma situação individual, ela é uma situação social. A gente precisa ter consciência de como todas as crianças estão sendo educadas para que possa fazer essa mudança.

FF: Tu acha que isso já tá acontecendo um pouco? Tem o início de mudança?
Iara: Com certeza, porque tem uma geração de mulheres muito jovens que já são mães de meninos. Elas conversam com esses meninos e eles já estão recebendo outra informação e estão vendo o posicionamento da mãe. Por exemplo, a minha mãe tem 80 anos e é machista, as minhas primas que foram mães ainda tinham resquícios machistas. As mães mais jovens atualmente, entre 20 e 30 anos, já têm um posicionamento diferente. Acho que o fato delas conversarem com os meninos é como começa a transformação. Tenho certeza que a gente vai ver um resultado bom em dez ou quinze anos. Também acredito que existem homens de 40, de 30 anos, que têm uma sensibilidade apurada, que estão lutando para ser um pouco melhores porque percebem o que acontece. Mas a socialização é muito dura, eles podem tentar ser melhores, mas estão rodeados de pais que não prestam, dos amigos que ficam puxando para o mesmo lugar. Os que me escrevem contam isso: se eles começarem a entrar num processo muito diferente, eles perdem as amizades. O homem se move ao redor desta socialização violenta.

FF: E tu acha que as mães que vão mudar o mundo?
Iara: Olha, neste momento eu acredito que são elas que tem o poder de começar uma transformação. Elas ainda não têm o apoio do Estado ou uma educação neutra. Os meninos entram na escola e já colocam para jogar futebol, para brigar com o coleguinha. Ainda não existe um apoio social, digamos assim. Então eu acredito que as mães podem começar alguma coisa, sim. Mas o caminho é longo, porque a gente tem um problema gigantesco na frente que é o que eu sempre falo, fecha qualquer possibilidade de diálogo, que é a pornografia. A partir do momento que você tem crianças de dez, onze anos viciada em pornografia…

FF: Mas mentira que existe isso! Criança viciada em pornografia?
Iara: Sim! Tem um site maravilhoso: “Se recuse a clicar”. Eles também estão no Instagram e sempre trazem reports internacionais. A Espanha, por exemplo, é um dos países que mais investe no acompanhamento do tráfico de pornografia. Todo ano eles divulgam os números, que sempre são assustadores. O que vem chamando muito atenção dos pesquisadores é que a cada ano a idade vai ficando menor. Hoje, por exemplo, na Espanha já tem crianças de 8 anos viciadas e sendo tratadas. Por que aquilo causa uma distorção mental, então realmente é muito grave. Vai ser uma luta gigantesca para as mães.

FF: Mas como que eles começam isso? Isso é abandono, não é?
Iara: Sabe que este é um drama que as mulheres vêm me contado. Começa pelo famoso paizão, o pai que fala “vou ensinar meu filho a ser homem”. Daí o pai assiste e passa para o garotinho ver e “aprender a ser homem”. A criança que está com o celular leva para a escola e começa a mostrar pros coleguinhas. E todos os coleguinhas têm um tiozão, um paizão, um avozão, alguém que já tá ensinando ele a “ser homem”. E é assim que eles começam a ficar viciados. A criança não chega sozinha na pornografia, é um adulto que leva. Tenho recebido muitas mensagens de mulheres que estão sofrendo muito porque elas estão tentando educar os filhos, fazer o que elas podem e daí elas descobrem que o pai é que mostrou. E quando elas vão reclamar, eles vêm com aquela história de “ah, eu estou ensinando ele a ser homem”, “ser homem é isso mesmo”. É um grande problema. Inclusive, eu achava que antes as coisas obedeciam a uma esfera social, eu pensava que era de homens que não tiveram acesso ao ensino, que eram um pouco ignorantes em relação a algumas coisas. Mas eu recebo mensagens de mulheres casadas com professores de filosofia, médicos, arquitetos, homens de alto nível. E são eles que estão levando os filhos para pornografia.

FF: Mas gente! Em pleno século 21!
Iara: E você sabe o que é muito interessante? Além de ser em pleno século 21, são homens que conhecem o ponto de vista da mulher, pois conversam com a mãe, com a irmã, com a namorada. Eles sabem, não tem como dizer hoje: “ah, coitado, ele não sabia que não dava pra mostrar pornografia pro menino”. Eles sabem!

FF: Os meninos que são criados para isso.
Iara: Sim. A mulher, apesar do esforço, está cercada. Eu sempre falo que quando eu comecei a escrever sobre mulheres, é como se eu tivesse entrado num castelo e de repente me levaram para o calabouço. Eu comecei a descer, descer, descer… Porque parece que cada dia acontece uma coisa que me surpreende mais. Dentro destas surpresas eu vou descobrindo as mil formas de abuso. Se é silenciosa, se é invisível. Por isso que eu escrevo tanto, tem muito material para escrever.

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