Jovens celibatários desafiam psicanalistas

Movimento crescente de jovens que, em pleno 2024, estão optando pela virgindade ou abstinência sexual. Alegam as mais diversas razões, como “falta de tesão”, “medo de contrair ISTs”, “desejo de se entregar apenas para a ´pessoa certa´, como um prêmio”.
Jovens celibatários

Acho intrigante esse movimento crescente de jovens que, em pleno 2024, estão optando pela virgindade ou abstinência sexual. Alegam as mais diversas razões, como “falta de tesão”, “medo de contrair ISTs”, “desejo de se entregar apenas para a ´pessoa certa´, como um prêmio”, “sensação de que a busca sexual consome muitos esforços e traz muitos conflitos”, “foco no trabalho”, “sexo altera o equilíbrio emocional”, “orgasmo descarrega uma energia que é importante reter para expandir a inteligência e a cultura”, entre outros. Ouço esses relatos e me pego pensando: essas alegações sanitárias, emocionais, energéticas, morais etc. são coerentes? Optar pelo celibato faz bem? Isso é anacrônico?

Em se tratando de sexualidade humana, é muito difícil e talvez desnecessário traçarmos uma fronteira entre normalidade e patologia quando o comportamento sexual diz respeito a seres que alcançaram autonomia no seu desenvolvimento psíquico e são, portanto, capazes de consentir. Talvez os celibatários estejam na categoria dos “assexuais”, uma parcela da comunidade LGBTQIA+ que tanto batalhou pelo seu direito de reconhecimento e de despatologização. 

Para a psicanálise, sexualidade não é sinônimo de coito e nem de genitalidade; sexualidade é ligação, erogeneidade, prazer. Nesse sentido, é importante saber a qual sexualidade se refere o celibato. Uma pessoa que desiste tanto da sexualidade genital quanto da sexualidade pré-genital (como Freud concebeu o nosso prazer com uma boa comida, em arrumar a casa, em jogar cartas, em receber uma massagem, por exemplo), ou seja, uma pessoa que perdeu a capacidade de sentir prazer e de gozar com a vida de uma forma mais ampla, parece ser uma pessoa com sinais de depressão ou trauma. Uma pessoa que desiste tanto da sexualidade genital quanto da intimidade, de se conectar e de se ligar com o outro, de formar vínculos, parece ser uma pessoa com sinais de fobia, melancolia ou funcionamento psicótico. O desafio para os psicanalistas está em pensarmos nas pessoas que mantém a capacidade de ter prazer de outras formas, mantém vínculos significativos maduros, mas abriram mão apenas da sexualidade genital. 

Do ponto de vista da fantasia inconsciente, o celibato voluntário pode estar associado a uma recusa ao crescimento, uma infantilização da vida mental, uma espécie de congelamento psíquico em uma época da vida pré-puberdade, em que a genitalidade ainda não havia entrado em jogo. Vejo em muitos jovens atualmente uma dificuldade mais geral em encarar e adentrar o mundo adulto como um todo, mesmo considerando que “adulto” tenha um significado diferente para cada pessoa ou grupo. Para uns, ser adulto se relaciona a exercer funções de cuidado (cuidar das próximas gerações, dos pais, da sociedade, do ambiente); para outros, significa ter autonomia financeira; pode também significar assumir responsabilidades e exercer tarefas sociais significativas, com poder de transformação no mundo. Na teoria psicanalítica, adultez se relaciona à constituição e à integração da identidade, gerando um senso de si mais permanente e estável. Assim, percebo um movimento crescente de recusa a adentrar nesse universo adulto e sexuado. Precisamos ver, então, se há algum desses outros elementos de recusa ao corpo, à mentalidade adulta ou à integração da identidade nesses jovens que optam pelo celibato. 

Dentre os jovens com capacidade de fruição e conexão emocional, mas que renunciam à genitalidade, parece-me importante diferenciar dois fenômenos: 1) a inibição ou repressão da sexualidade adulta em decorrência da fantasia de que sexo é algo assustador e perigoso ou 2) a decisão consciente e cuidadosa de postergar a vivência da sexualidade adulta em função do desejo de se relacionar melhor com o próprio corpo, com os afetos e com a intimidade, o que seria um celibato voluntário momentâneo. A nossa relação com a sexualidade é moldada por eventos internos e externos, sendo que a forma como percebemos nossos pais, cuidadores, ídolos, figuras de autoridade e a mentalidade à nossa volta tem um papel determinante. É possível que o primeiro grupo se sinta submetido a adultos castradores e repressores enquanto o segundo grupo perceba os adultos como amorosos e cuidadosos, desenvolvendo a crença de que a relação entre dois sujeitos pode ser fértil, criativa, capaz de gerar algo novo e bom. 

Sabe-se que a atividade sexual prazerosa exerce um papel importante na regulação do humor, mas também se sabe que a atividade sexual desconfortável exerce um papel importante no desenvolvimento de traumas e na construção de uma autoimagem negativa. Nos casos de pessoas com uma história sexual desconfortável e dolorida, física ou emocionalmente, o celibato voluntário pode ser uma defesa. A sexualidade se relaciona com processos arcaicos do sujeito. Nós não conseguimos enxergar como o psiquismo é moldado, sua constituição primitiva se revela apenas em seus efeitos futuros. Assim, vemos que em alguns casos o celibato voluntário pode denunciar conflitos com a intimidade (que se relaciona com confiança e vulnerabilidade), com o corpo, com a vida adulta, com as figuras significativas da vida do sujeito, sendo indicado investigação psicológica mais detalhada. Temos que tratar essa questão com respeito, sensibilidade e empatia, construindo significados individuais para cada pessoa e cada situação.

 

Artigo por Marina Gastaud @marinagastaud,psicanalista pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, pós-doutora em Psicologia Clínica.

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