Para fazer o título desse texto pedi licença para a entrevistada. E vi o meu preconceito. Como assim, largar tudo para ser mãe? Acho que, no fundo, eu senti um pouco de inveja e até uma inconformidade: ralei a vida inteira, tive dois filhos, construí isso e aquilo e a Liana vem e me diz que largou a “minha vida” para APENAS ser mãe? E, então, vem uma cena que vivi em frente ao sinal vermelho, carro parado, olho para o lado e vejo uma mendiga com dois filhos pequenos, um de colo, sorrindo brincando com eles. Era umas 10h da manhã e eu já havia feito umas duas jornadas. Fiquei colada no que via. Eu queria TAMBÉM aquilo que aquela mulher tinha. A mulher de rua tinha o que eu não conseguia concretizar. A divagação acabou com a buzina do carro atrás me lembrando que eu deveria seguir para a minha vida. A que escolhi. E escolhemos mesmo?
A Liana escolheu. Não assim, tudo lindo, um piano ao fundo tocando uma sonata de Beethoven e todos olhando para câmera sorrindo. Foi um parto parir seu desejo de ficar com a filha. APENAS? hahahaha. Só gargalhando! Filho é tarefa para os 12 trabalhos de Hércules, para um Zeus. Aliás, duvido que esses dois teriam força para cuidar das crianças do Olimpo.
A Liana nos conta como foi a decisão e como se sente hoje, com a filha já crescida.
Boa leitura.
Fátima Torri, a editora.
Quando eu engravidei, eu morava em Florianópolis. Acabei indo para lá, o Leonardo fazia doutorado e eu comecei o mestrado. Eu sou formada em turismo e comecei a fazer o mestrado na federal de Santa Catarina. Os dois na mesma área de engenharia de produção. Aí eu engravidei e continuei fazendo tudo. Fiz as disciplinas e ele foi com o salário e com o emprego aqui em Porto Alegre.
Quando faltava um mês para a minha filha nascer, a gente voltou. Ele tinha que terminar a tese dele. Eu não tinha mãe e a minha sogra morava longe, não tinha rede nenhuma de apoio e acabou que, como eu não tinha emprego também, eu abri mão de fazer a minha dissertação porque eu não ia dar conta com uma criança recém nascida. Tinha uma faxineira, que ia na minha casa há muito tempo e o nome dela era Maria e eu coloquei o nome da minha filha de Maria também. Um dia eu estava com a minha filha no colo e ela disse assim: “Larga essa criança, ela vai ficar cheia de mania de tanto que tu pega no colo”, mas era uma coisa que eu gostava.
O Leonardo sempre viajou muito, de ficar 20 dias viajando às vezes. Quando isso acontecia eu colocava a Maria na minha cama. Eu tinha uma prima, que me ajudava quando eu precisava, mas também trabalhava, tinha a vida dela, tinha filhos, mas era a pessoa com quem eu podia contar. A Maria foi para a escola com dois anos. A escola dela era só à tarde e eu resolvi que ia voltar a trabalhar. Procurei um ex-chefe e ele me ofereceu emprego. Fui lá para tratar, quando eu cheguei o salário era muito pouco e eu comecei a fazer as contas do que eu precisava para ir trabalhar. Eu precisava ter uma boa pessoa para cuidar da minha filha, precisava de alguém que levasse ela para a escola… fiz o cálculo e não deu. Aí a gente conversou em família e decidiu que eu ia ficar em casa cuidando dela. E eu confesso que eu adorei ficar com ela todos esses anos, a gente estabeleceu uma relação muito boa. Eu por um lado era e sou agradecida, porque eu não era cobrada do meu marido que eu não tinha dinheiro, até porque eu fazia alguns trabalhos esporádicos eventualmente, que não atrapalhasse a estabilidade dela. Como eu não tinha com quem deixar e ele viajava muito, não tinha como buscar se acontecesse qualquer coisa, eu tinha que estar perto.
Ela ia numa escola em que os pais participavam muito. Seguidamente eu ia nos passeios da escola, chamavam nas reuniões e eu me habilitava. Gostava muito de fazer aquilo! Um dia uma mãe me pediu para não ir mais, porque a filha cobrava muito que ela não podia ir. A mãe trabalhava o tempo todo e eu fiquei pensando:”Como assim? Não vou ir porque a outra, lá na casa dela, escolheu outra opção de vida e ela quer que eu largue a minha opção por ser diferente da dela?”. Em outra ocasião eu lembro que estava em casa me ligam da escola porque a mãe da fulana tinha esquecido que tinha marcado unhas e não ia poder ir, se eu podia ir no lugar dela.
Depois na outra escola que a minha filha foi eu também era muito participativa, eu gostava de estar com ela. Eu lembro que um dia eu comentei com uma das donas da escolinha um assunto e ela me disse: “Para de perguntar para essa criança como foi”. Mas era assim, a gente sempre estabeleceu uma relação muito boa, até hoje a gente se dá muito bem, a gente conversa sobre tudo. Eu entendi muito cedo que a minha filha – por eu ter 35 anos e meu marido ser mais velho – possivelmente fosse ficar sozinha, então eu tentei ensinar tudo que é possível, tudo o que eu posso eu ensino. Ela cozinha muito bem, por exemplo.
Nunca fui cobrada por dinheiro, falta de dinheiro. Ele nunca disse “Está me pesando”. Ele não, mas eu percebia que isso incomodava muita gente, inclusive familiares mulheres… Tinha uma coisa que me doía bastante: eu sempre fui muito atualizada, eu gosto de política, gosto de conversar, gosto de ler. E eu me lembro que quando eu chegava em um lugar com o meu marido e a família – ele é uma pessoa bem conhecida no meio dele – e as mulheres me olhavam e perguntavam:”O que tu faz?” e eu dizia: “Eu sou dona de casa”, aquilo era um troço que parecia que eu tinha me desmanchado na frente das mulheres, parecia que eu não existia mais.
Às vezes as mulheres mesmo achavam que o meu marido era um coitado, porque tinha aquela mulherzinha dentro de casa e davam em cima dele. Eu pensava: “Meu Deus, como pode essa pessoa não reconhecer?”. Eu acho que em lugar nenhum eu faria tão bem o que eu fiz, o papel de mãe. Como profissional não faria em nenhum outro lugar e eu gosto muito. Acho que todas decisões são individuais, não serve para todas mulheres. São muitas coisas que entram nessa composição para que as pessoas possam ficar em casa. Tem gente que trabalha só para sair de casa, tem gente que não gosta de ficar com a família, tem gente que não gosta de ficar com os filhos, tanto faz, eu gosto.
Eu me dou muito bem com a minha filha. Posso dizer que é uma das pessoas que eu mais converso, nós somos amigas. Embora, eu nunca deixei de ser a mãe, as vezes eu dizia para ela: “Eu não sou tua amiga, eu sou tua mãe”, mas a gente sempre conversou, eu sempre aceitei quem ela era. É quase como um encontro de almas meu e dela e meu marido permitiu isso. Eu respeito isso porque, primeiro é uma pessoa que não é ligada a dinheiro. Claro que tem dificuldades como todo mundo, mas no geral, quando eu me afasto e olho, penso: “Que baita família que eu consegui”. Claro que teve problemas, e tem até hoje, mas eu gosto muito do que eu consegui. Eu não trocaria por nada, sou super feliz na minha vida.
Minha filha saiu de casa agora, foi para São Paulo e está sendo bem difícil para mim. Com a pandemia a gente ficou em casa direto, não saia mesmo, foram dois anos praticamente de muito convívio, 24 horas. Teve problemas no início até se acostumar, mas é muito bom. Quando ela saiu foi muito difícil para mim e para o meu marido. Ela foi num domingo de manhã, a gente levou ela no aeroporto e quando eu voltei para casa tive uma sensação horrível, porque eu sei que não vai ser mais como era. Não quer dizer que não seja bom, que não vá ser melhor, mas é um outro momento, outro processo que eu tenho que aprender. Ela me liga não sei quantas vezes por dia, eu sei que vai ser sempre aqui que ela vai voltar, mas eu sinto muita falta. As minhas amigas me ligam para saber como eu estou, porque todo mundo que me conhece e conhece a Maria sabe que a gente tinha uma relação muito próxima. Ah, vou aprender, eu tenho marido, tenho uma vida também, mas no início foi bem difícil.
Liana Galant
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