Comportamento, Saúde, Vida

Inspira, respira, não pira

Nascida em Santa Maria-RS, no dia 10 de fevereiro, a aquariana Liège Gautério, de 47 anos sempre teve uma relação intensa com o corpo em movimento. Aos cinco, começou a fazer aulas de ballet e a partir daí nunca mais parou. É a mais velha de três filhos. “Aqui em casa nascemos a cada seis anos, vim na frente, seis anos depois de mim veio minha irmã Lara, e seis anos depois dela, nasceu o caçulinha,  Thiago”. Hoje moro com a minha mãe, Neli, meu irmão e dois cachorros, o Border Collie,  Bolt e a vira-latinha, Mell. Minha irmã tem o apartamento dela, mas passa mais tempo conosco, então, praticamente mora aqui também”. 

Em função das transferências do pai, Seu Djalma Gautério, delegado da Polícia Federal, já falecido, a família morou em muitas cidades do país. Bagé, Foz do Iguaçu, Campo Grande, Belém do Pará, e só aos 12 anos Liège voltou para Porto Alegre. Formada em Educação Física, Biologia e Fonoaudiologia, é proprietária de um centro de treinamento no bairro Petrópolis, onde é personal trainner, professora de Pilates e treino funcional.  Ah, claro, ela também é atleta nas categorias dos 100 e 200 metros rasos. Mas você deve estar se perguntando o que essa história tem de tão excepcional. Acontece que Liège é transplantada de pulmão desde 2011, consequência de uma fibrose pulmonar, doença progressiva e praticamente sem tratamento. E em 2015, no meio de um campeonato, descobriu um câncer.

“Tive o meu diagnóstico de fibrose em 2003. Um dia acordei com uma dor nas costas que achei que podia ser muscular. Fui para a academia, mas aquela dor não passava, então procurei atendimento na emergência da PUC. Depois de uns exames, soube que a causa era um pneumotórax no pulmão esquerdo e que ele corria o risco de colabar, ou seja, perder a capacidade de expandir e retrair, e impedir a passagem do ar. A médica que me atendeu disse que eu precisaria fazer um transplante, mas como me sentia bem, a ficha não caiu naquele momento. Em 2007 tive outro pneumotórax e fui operada na Santa Casa. Em 2009 comecei a sentir cansaço para correr e subir lombas, mas nunca deixei de treinar. Ia para a academia com concentrador de oxigênio”. 

A única coisa possível era esperar

Durante oito anos controlando a doença, ela nunca parou. Trabalhou, correu, deu aula, cuidou do corpo, da alimentação e nunca desistiu. Mas, em 2011 a doença evoluiu e ficou difícil realizar tarefas simples como tomar banho e até escovar os dentes. Liège ficou tão cansada que passou a literalmente morar no quarto, além de usar oxigênio 24 horas. Entrou na fila dos transplantes em abril, se formou em Educação Física em julho, comparecendo à cerimônia com oxigênio portátil, mas só em 29 de setembro aconteceu o transplante.  

“Lembro que um dia antes, eu estava deitada no quarto, olhando para o teto e pensando que ainda faria aquele transplante em setembro, porque no verão iria para a praia e em março voltaria a rotina normal. E realmente aquilo se cumpriu. Eu fui para o hospital eufórica porque teria uma vida nova. Foram dois dias na UTI e depois fui para o quarto. A sensação de conseguir respirar por si é mágica, voltar a ter autonomia sobre o próprio corpo é uma coisa inexplicável. Eu olhava uma escada e pensava: ‘será que consigo subir e descer sozinha?’ Tive que reaprender tudo de novo, como uma criança, precisei me reescrever, eu era outra Liège”.

Dois anos depois do transplante, ela perdeu o pai, curiosamente vítima de um câncer de pulmão. 

“Uma vez li uma frase que gostei muito, ela diz que o doador de um órgão transplantado também é grato, pois com esse gesto ele dá a oportunidade para que outra pessoa possa renascer.”

Uma série de “casualidades”

Liège é aquariana, signo do elemento ar. Como atleta, corre nas categorias de 100 e 200 metros rasos, o que exige fôlego para vencer o vento. O transplante aconteceu no dia 29 de setembro, sob o signo de Libra, também do elemento ar, no dia de São Miguel. Ela recebeu o pulmão esquerdo do doador, e o direito foi transplantado em um senhor de nome Miguel. 

Mas as “desventuras” não pararam. Como se o destino exigisse mais uma prova de coragem, em agosto de 2015, enquanto se preparava para a 20ª Olimpíada de Transplantados, em Mar del Plata, na Argentina, Liège foi diagnosticada com câncer de mama, também do lado esquerdo. Porém, após um acordo com a médica, a cirurgia foi marcada para depois da competição. 

“Sempre gostei de fatos históricos do tipo quem inventou a lâmpada, quem descobriu a cura de alguma doença, quem foi pioneiro em alguma coisa. “Eu nem sabia que aquele tipo de competição existia, só conhecia os Jogos Paraolímpicos.  E lá estava eu, a única mulher – e gaúcha – num evento daquele porte com outros atletas transplantados de 60 países. Ver as delegações e competir em um evento desse tamanho dá muita visibilidade à causa. Liège ganhou ouro nos 100 metros disputados com mais três transplantados.  A medalha foi doada para o Museu da Santa Casa. 

De volta a Porto Alegre, também no dia 29 de setembro, retirou o tumor. Como estava encapsulado, a recomendação para tratamento com radioterapia não foi uma opção, por ser do mesmo lado do pulmão transplantado. Por causa desse detalhe, Liège foi submetida a uma mastectomia e fez o tratamento com medicação oral.

“Eu sempre tive o pensamento na cura, me via saudável no futuro, porque para quem já quase morreu uma vez, qualquer outra coisa que venha a acontecer não é nada, afinal, prova que estamos vivos”.

“Dois anos depois disso, os jogos dos transplantados foram na Espanha, quando conquistei o bicampeonato. Na edição da Inglaterra, em 2019, fiquei em terceiro lugar porque tinha rompido os ligamentos do joelho esquerdo. Agora estou me preparando para o tricampeonato em Perth, na Austrália, em abril do ano que vem”.

Ela fala que a doação de órgãos é um desprendimento, um ato de amor de alguém que morreu, mas de algum modo disse sim para a vida.  “A partir disso, não existe preconceito, ninguém que está na fila de transplante pensa que o doador tem opinião religiosa, política ou situação econômica contrária, se é gay ou hétero, se torce para um time diferente, ou simpatiza com esse ou aquele partido… isso simplesmente não faz diferença porque ninguém quer dizer não quando depende de um órgão pra salvar a tua vida”.

De volta à rotina, a máquina tá funcionando

Liège treina praticamente todos os dias, cada dia uma coisa diferente. Faz musculação, treinamento funcional específico para corrida e Pilates. Dá aula de Pilates, dá aula na academia e trabalha no período da noite numa escola estadual pela formação em Biologia. Ela é a criadora do Se Mexe TX, grupo criado no Facebook durante a pandemia para motivar outros transplantados a praticarem atividades físicas e melhorar a qualidade de vida. Para Liège, dar aulas e praticar Pilates foi de fundamental importância, sobretudo em relação à respiração. “Sempre enfatizo em minhas aulas a função da respiração na execução dos exercícios. Como minha inspiração era muito limitada antes do transplante, trabalhar a musculatura intercostal ajudou muito no resgate da minha postura (que estava cifótica por causa da limitação respiratória) e flexibilidade”. 

“Na rotina de exercícios não precisa se acabar de treinar, mas precisa ter frequência. Pode dar duas voltas na quadra, mas se fizer isso todos os dias, já faz diferença.”

Embora esteja solteira há cinco anos, mantém uma ótima relação com o ex-namorado e o filhinho dele. Mesmo com toda a disposição e energia para os treinos, na hora de ir para uma balada, Liège até se empolga, mas chega na hora e bate a preguiça. “ Já saí muito, mas a gente vai chegando perto dos 50 e fica mais acomodada. Depois, com a Pandemia, todo mundo ficou mais recolhido.  Vem o convite, eu até topo, mas na hora eu penso melhor e escolho ficar na minha cama”. O programa legal mesmo é assistir seriados com a irmã.

Divulgar a doação de órgãos e a prática de atividade física é extremamente importante

“A sensação de ganhar um pulmão é um presente. A gente respira e sente a vida. Agradeço muito à família do doador por este ato desprendido de ajudar uma pessoa mesmo passando por num momento muito difícil.  Foi porque eles disseram sim que devolveram a minha vida. Por isso é importante expressar o desejo de ser um doador para que a família saiba e respeite essa vontade.’’

“Nessa jornada aprendi que a gente não precisa de muito para ser feliz. Se sentir viva, respirando normalmente é uma coisa mágica.”

Dizer sim quando a vida diz não

Em 2021,  o número de transplantes de órgãos caiu no Brasil na comparação com o ano anterior. A pandemia de Covid-19 fez com que o número de transplantes de órgãos e tecidos caísse em aproximadamente 20%, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). Um levantamento da associação mostra que ocorreram 7.362 procedimentos entre janeiro e dezembro de 2020. Já no ano anterior, em 2019, foram 9.189 transplantes. Os mais afetados foram os de córnea e pulmão, seguidos por coração, rim, pâncreas e fígado. 

No primeiro trimestre de 2021, de acordo com a ABTO, foram 4.122 transplantes de tecidos e órgãos. Já no mesmo período de 2020, foram 5.729 procedimentos. Uma diminuição de 28%. Comparado com o primeiro trimestre de 2020, houve queda de 26% na taxa de doadores, no geral. 

No caso do transplante de pulmão, a queda foi de 62%. Ainda segundo a associação, houve aumento de 2% no número de potenciais doadores de tecidos e órgãos, em geral, mas a taxa de efetivação caiu 25%. Isso se deve ao aumento do número de casos de contraindicação (50%), principalmente por conta da pandemia, de não autorização familiar (14%) e parada cardíaca durante o processo de doação (25%).

Ainda conforme a ABTO foram feitos 33 transplantes pulmonares no país em 2021, até o momento. A redução nos procedimentos durante a pandemia foi expressiva. Em 2020, foram 65 transplantes de pulmão, enquanto no ano anterior, em 2019, foram 106 procedimentos.

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