Maria Annita Linck sempre foi considerada a artista da família. Enfeitar a casa para ocasiões especiais como Páscoa e Natal, fazer um pacote bonito de presente, era tudo com ela. Foi educada para ser boa dona de casa, ter prendas domésticas, casar e ter muitos filhos, como a mãe, que deu à luz a sete, contando com ela. Só que Maria Annita nasceu, na verdade, para ser Marianita, nome artístico que usava para assinar os trabalhos em cerâmica. Não teve filhos, não casou. Dedicou sete décadas à arte, viajou pelo mundo, lecionou, escreveu um livro, e hoje, aos 96 anos, desfruta da tranquilidade da missão cumprida. Vive só e independente por opção.
“Amassar o barro, compor as massas, testar pigmentos, tratar as superfícies com as mais diversas texturas e esgrafitos, escolher as tintas, acompanhar as queimas… A expectativa de abrir o forno sempre foi um reencontro comigo mesma”
, escreveu a ceramista no seu livro autobiográfico Cerâmica, um caminho de vida: Marianita Linck. “Com 94 anos, eu escrevi o livro e quando eu escrevi, eu disse: ‘vai ser com as minhas palavras, ninguém vai corrigir nada pra ser intelectualizado’. O livro foi distribuído em bibliotecas, instituições de ensino e centros culturais, para servir de material de pesquisa. “Dediquei ao meu irmão [Geraldo Tollens Linck]. Ele sempre quis que eu escrevesse.”
A artista foi responsável pela criação do primeiro curso de graduação em Cerâmica no Brasil. Foi professora de Educação Artística em escolas, trabalhou com educação de surdos e permaneceu como docente na UFRGS de 1968 a 1991, quando se aposentou para se dedicar totalmente ao seu fazer artístico. Ganhou bolsas para estudar nos Estados Unidos, na Argentina e no Japão. Viajou muito, com seus próprios recursos, em busca de conhecimento. Foi assim que se tornou a Marianita. Segundo Blanca Brites, professora e pesquisadora do Instituto de Artes da UFRGS, “forte como a terra e vibrante como o fogo”. Respeitada no meio acadêmico e pelo legado artístico, a talentosa porto-alegrense fez da argila potes, pratos, vasos, poesia e arte.
A vontade de transformar argila em versos
“Sinto falta da fase de criança. Tinha tantos irmãos e primos, a gente não frequentava tanto a sociedade, tinha um núcleo familiar muito bom”, afirma Maria Anitta. Com educação rígida de uma família de origem germânica, morou em Porto Alegre até a ida para Guaíba, onde o pai passou a trabalhar no Matadouro São Geraldo. “A gente fazia tudo certinho, no horário. Os quatro guris tinham que arrumar o armário deles. A organização que aprendi, passei pros meus alunos”. Os irmãos homens atravessavam o rio para estudar. Mas ela e a irmã mais velha foram levadas ao colégio interno São José, em São Leopoldo, onde permaneceu dos nove aos 17 anos.
Foi então que pediu para entrar no Instituto de Belas Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. E, em 1946, ao concluir o ano adicional de aperfeiçoamento, começou a lecionar. “Dei aulas de desenho, pintura e um pouco de geometria. Depois, fui pros Estados Unidos, fiquei de 1956 a 1957 lá. Quando voltei, fui trabalhar na Secretaria de Educação como orientadora. Dei muita orientação para os surdos, fazia trabalhos manuais com eles. Então, comecei a dar aulas em colégio por 30 anos.”
Tirar o verbo do barro
Maria Anitta descobre a Marianita no Belas Artes, quando teve uma orientação de modelagem. “Eu nunca tinha trabalhado com barro e descobri que era boa nisso. Como vinha de um colégio católico, eu era muito tímida. Entrei lá e o Fernando Corona [professor de modelagem e escultura] começou a implicar comigo. Mas ele não me estimulou, ao contrário, uma vez eu fiz uma cabeça bonita e ele viu e deu um soco: ‘isso é pra tu não ficares achando que é grande coisa’, ele disse. Não lembro exatamente as palavras, mas aquilo me doeu demais”, conta.
A escolha da assinatura Marianita se deve a um motivo relacionado à mãe. “Ela se chamava Anita e o meu nome botaram Maria Annita. O pessoal tira a Maria e começa a me chamar de Anitta e eu digo: ‘isso não está certo, Anita é a minha mãe. Eu sou Maria Annita!’ Então juntei, mas eu assino separado, só na cerâmica eu assino Marianita”.
Iberê, o visceral
“Eu conheci o Iberê e sua esposa, Maria, quando já estava começando a fazer cerâmica. Fui uma vez ao Rio para me apresentar, por admirar seu trabalho, e levei de presente um pratinho. Ele gostou muito e achou que era uma boa cerâmica. Quando ele veio pra cá, deu aula de pintura e eu fui assistir. Entendia que ele era um grande artista e professor. Busquei inspiração. Fui também muitas vezes na casa dele pra ver ele pintar. Fizemos alguns pratos de cerâmica juntos. Tenho quatro aqui em casa. Eu admirava o trabalho dele, porque ele se atirava de corpo e alma. Era algo visceral.”
Dona da própria vida
Maria Anitta mora há 52 anos na mesma casa, desde que a mãe faleceu, no bairro Moinhos de Vento. Sobre o envelhecimento, ela se mostra tranquila e dá dicas para outras mulheres: “não é por ser solteira que tu és um trapo. A mulher tem que ter amor próprio, se valorizar. Mesmo se tu casas e tens filhos, tu tens que ter a tua vida particular.
Casar não é profissão, não te dá nada, a mulher dá tudo no casamento.
Então, o que dela, da imagem dela, do que tem no coração, o que fica? Amor, a gente deve ter sempre por tudo, pelos parentes, filhos, mas, primeiro de tudo tem que ter amor a Deus, amor à vida, respeito à vida e amor próprio. Isso te dá boa velhice. Se tu não tens isso sempre, na velhice tu te tornas dependente. Não podes perder a vaidade, a mulher envelhece quando perde a vaidade.”
Maria Anitta optou por não casar e nem ter filhos. “Eu fui noiva por quatro anos. Tinha feito 24 anos quando noivei, nessa época todo mundo estava noivo lá em casa. Mas, já não dava certo e eu dizia que não queria mais, até que um dia ele desmanchou e eu levei meio que um choque”, afirma. Sobre ter amado alguém, a resposta é não. Diz ter vivido apenas namoricos. A grande paixão de sua vida parece ser mesmo a arte.
E ela vive intensamente, há quase 10 décadas, dessa paixão.
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