Arte, Vida

Inquieta, curiosa, hiperativa e autodidata:

Marilene Bittencourt transpira arte.

Natural de uma pequena comunidade na fronteira com a Argentina, ela fez da arte asas para alçar grandes voos. De galerista a marchand, decoradora, editora de mobiliário e fotógrafa, ela vem trilhando diversos caminhos. Em todos, estão presentes a busca pela beleza e a paixão pela vida.

Era noite de tempestade quando ela nasceu em Porto Biguá, uma comunidade de Alecrim, noroeste do Rio Grande do Sul. “Nasci em casa, uma pequena propriedade rural situada às margens do Rio Uruguai”, conta Marilene Bittencourt, filha de agricultores e a mais nova de 13 irmãos. A cidade, que hoje tem cerca de sete mil habitantes, era ainda menor no meio da década de 1960, e não havia de comportar os sonhos daquela menina por muito tempo.

“Fazíamos a travessia de barco a remo para ir ao supermercado na Argentina, no outro lado do rio. Para ir à escola, era a pé ou a cavalo, 6km, todos os dias. Vivi até os 11 anos nesse lugar bucólico”, conta. Em 1977, ela parte para Santa Rosa. Os pais haviam se separado quando ela tinha três anos. Sebastião, o pai, foi para o Paraná, onde constituiu nova família. E a mãe, Alcedina, pensava em oferecer melhores opções aos filhos. “Minha mãe sempre foi um exemplo de mulher muito forte, lutadora, do campo. Com muita dificuldade, criou os filhos, nos encaminhando para o estudo e nos preparando para a vida”, relata Marilene, orgulhosa.

“Passei a adolescência em Santa Rosa, estudei em escola pública e logo me identifiquei com Arte e Geografia. Queria ir para Santa Maria cursar Belas Artes. Este curso ficou na vontade, pois conheci o meu primeiro namorado e, em apenas sete meses de namoro, me casei e fui morar em Santo Ângelo, onde vivi por 12 anos. Fui muito feliz e tive meus dois filhos lá”, recorda ela, que ainda estava terminando o Ensino Médio quando se casou. Dessa união, nasceram Eduardo e Leonardo.

No banco: não só dinheiro, mas diversão e arte

Marilene foi em busca de qualificação profissional e trabalhou no Banco do Brasil, onde o marido também atuava. Na agência e no Centro de Processamento de Dados do banco (CESEC), criou um espaço de arte. “Ali passei a fazer curadoria, levando artistas da capital para expor. Em 1986, fundei a Habitart, que nasceu para ser uma galeria de arte, loja de móveis e projetos de decoração”, conta.

Decidida a aprender mais sobre o ramo, fez o curso de Decoração e Arte na Escola Yedda Montano Difini, em Porto Alegre. O filho caçula ainda era bebê, mas acompanhava a mãe. “Trazia o Leonardo, vinha a babá junto; e eu ficava na casa da minha cunhada. Naquele período, conheci vários artistas e arquitetos. Vinha pelo curso e também a trabalho”, diz. Mesmo depois de concluída a formação, ela seguiu na estrada. “Fiquei oito anos entre idas e vindas, carregando arte, levando artistas para Santo Ângelo. Realizava exposições no espaço do banco e no Centro Municipal de Cultura. Em paralelo, fazia projetos de decorações, e por isso iniciei a representação de uma fábrica de móveis, ponte para adentrar no universo do design de mobiliário” explica Marilene. “O fato de não ter cursado a universidade sempre me fez ler muito, fazer cursos e praticar. E assim fui aprendendo com os erros, e aperfeiçoando meu trabalho”, confessa.

Novos rumos na capital

“A ânsia de conhecer, conquistar o mundo e me qualificar profissionalmente, me fez decidir por Porto Alegre”, recorda a galerista. Ao mesmo tempo, o casamento dava sinais de desgaste. Então, ela decidiu se separar e viver na capital com os dois filhos. Sobre o ex-marido, ela conta: “Somos amigos até hoje. Ele sempre foi um pai maravilhoso e presente. É uma pessoa sensível, coerente e estável. Logo que eu vim, ele acabou vindo também, para ficar perto dos filhos, depois se casou com outra pessoa”.

Recém-chegada a Porto Alegre, Marilene trabalhava na galeria Costa Brava e se dedicava aos filhos que, além da escola, frequentavam aulas de música, de arte e de tênis. “Meus filhos sempre foram prioridade na minha vida, para onde eu ia os levava junto; me organizei de forma que o meu trabalho e o colégio ficassem próximos de casa, e tive sempre o apoio do pai deles”, lembra ela. 

Um imenso amor

Depois de um ano e meio sozinha, na inauguração da loja de uma amiga, ela conheceu Walmor Bergesch, executivo da telecomunicação. Era dezembro de 1997. “Eu tinha 33 anos. Nos apaixonamos, namoramos e casamos em meses. Walmor e eu descobrimos muitas afinidades e, aos poucos, ele foi conhecendo meus filhos e foi nascendo uma amizade entre eles para toda a vida. Ao lado dele, me sentia mais mulher, mais segura, realizada. Talvez por estar mais madura e pronta para isso. Por 14 anos, tive um companheiro que me entendia muito, me amava, respeitava, incentivava todos os dias, com toda aquela vivência, dinamismo e amorosidade que ele tinha. Era como eu, apaixonado pela vida”, recorda.

“Sempre andamos lado a lado, viajamos muito a trabalho, conciliamos carreira, filhos e família. Minha vida profissional, àquela altura, havia enveredado para a área do design. Cheguei a ser sócia na fábrica de móveis. Amei trabalhar com importantes nomes do design brasileiro, participar da Feira de Milão por muitos anos. Walmor ia se encontrar comigo e esticávamos em viagens pelo velho continente. Com ele, conheci quase toda a Europa”, comenta.

Companheirismo na saúde e na doença

“Depois veio a fase difícil. Walmor teve um câncer raro e, por dois anos e sete meses, larguei tudo para ficar ao lado dele, cuidar e acompanhar. Encontrei uma força que nem eu sabia que tinha. Travamos uma busca incansável pela cura: quimioterapias, radioterapias, cirurgias. Ao final, o perdi para essa doença horrível. Ele partiu em agosto de 2011. Foi muito triste. Em março de 2012, minha mãe também se foi. Ela vivia em Santa Maria, e não pude estar cuidando dela, mas minha irmã fez essa parte por mim”, conta.

“Minha mãe era uma pessoa forte, decidida, à frente de seu tempo. Eu lembro dela todos os dias, e todas as decisões mais importantes que tomei foram inspiradas na força dela”, relembra. Sobre a relação com os irmãos, Marilene diz que é boa, apesar de alguma distância. Ela conviveu principalmente com os mais novos, de quem é mais próxima.

A vida bate, mas a vida ensina

“Perdi duas das pessoas que eu mais amava, que me amaram intensamente e me ensinaram tudo pelo que eu mais prezo nesta vida. Achava que havia visto tudo, não tinha forças para continuar”, conta Marilene, que ficou meses sem sair de casa no período mais sombrio, mas tinha de lidar com testamento, volta ao trabalho, cuidados consigo e com os filhos: vida real.

“Foi bem difícil encerrar as atividades da Habitart. Havia aberto a loja em 2009, era uma loja de vanguarda, importava o melhor do design europeu e já exportava peças incríveis de designers brasileiros. Na fase da doença do Walmor, ficou difícil, desabei mesmo, muitas pessoas não entenderam o fechamento da loja, e se afastaram. Demorei, perdi muito dinheiro, fiquei remando até 2013. Teve esse luto também”, lamenta.

“Claro que a vida bate, mas a vida ensina, e somos resultado de tudo o que vivemos. Memórias da minha infância voltaram a povoar meus pensamentos, voltei para a terapia, e lembranças mais difíceis vieram à tona. Me vi sozinha, como minha mãe, repetindo um padrão de melancolia e questionamentos. E, como na infância, quando as coisas ficavam difíceis, aprendi a abstrair, olhando para as nuvens que passavam em forma de cordeirinhos ou alazão a galope; ficava ali buscando formas ou olhando a força da correnteza do Rio Uruguai, e eu ia fotografando tudo com uma câmera imaginária”, revive. Para lidar com a dor, ela usou uma câmera de verdade. “Queria plasmar as belezas da natureza que me encantam e me distraem. Sempre que algo não está bem, posso escolher o meu destino, e buscar outras paisagens”, explica.

Fotografia, arte e amigos além do Atlântico

Quem também a ajudou a sair do luto foi Achilles, um belo golden retriever. “Logo que fiquei viúva, no meu primeiro aniversário, ganhei ele de oito amigas. Ele mudou a energia da casa, e todos nos alegramos muito”, diz Marilene, que à época também voltou a pintar aquarelas e fez uma viagem para a Turquia com os filhos e algumas amigas.

Pensando em trocar de ares, ela foi visitar o amigo e jornalista Tony Smith em Portugal. Eles haviam se conhecido anos antes, quando Marilene ajudou a desenvolver e exportar a poltrona Favela, criação dos irmãos Campana para a marca italiana Edra. Na viagem, conheceu o fotojornalista Fernando Ricardo, e a fotografia, que até então era hobbie, após alguns cursos, virou coisa séria. “Juntos fizemos alguns trabalhos, e embarquei nesta aventura. Fiz exposição em Porto Alegre, Lisboa e Cáceres, na Espanha; os temas foram Retratos indígenas (Tocantins, 2015) e Noche de Los Muertos (México, 2016)”, conta.

Partida e retorno ao Brasil

Foram cinco anos vivendo em Lisboa, entre idas e vindas. Eduardo, o filho mais velho, chegou a morar com a mãe no exterior enquanto cursava um MBA. “Quando o Eduardo voltou, senti um vazio enorme. Ir e vir tem um custo alto. Fiquei por lá o suficiente para saber que realmente adoro Portugal, é minha segunda pátria. Mas descobri que o Brasil, apesar de todos os problemas, ainda é um país de oportunidades. É aqui que quero e vou ficar! Voltei no final de 2018, já com a ideia de abrir uma galeria na minha casa. Quando veio a pandemia, tinha a casa, o jardim e o meu trabalho na galeria”, explica.

Arte, onde ela encontra ressonância emocional

“Sempre amei todas as formas de arte. Enveredei pelo design por alguns anos, fui para a fotografia, mas acabei voltando a trabalhar como marchand e galerista. Meus filhos são apreciadores de arte, e eu me orgulho muito disso. A arte humaniza, tem poder de cura e transformação. Traz beleza e leveza para a vida das pessoas, seja com música, pintura, escultura, fotografia. Através dos tempos, tem um papel incrível, contando a história da humanidade”, declara. Atualmente, na Habitart, em Porto Alegre, há programação de cursos, palestras e exposições. O atendimento é feito com hora marcada, de quarta a sábado. 
Marilene ainda não é avó, mas com o casamento do filho mais velho marcado para abril, ela olha para o futuro e faz planos: “Quero me dedicar mais a causas solidárias. Ver os netos correrem pela casa e completar o ciclo da vida, com saúde para trabalhar até o fim. E que acabe a pandemia, ainda quero viajar muito”, encerra.

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