Viver a experiência da maternidade é como estar em uma montanha-russa. Não só com subidas e descidas. Daquelas que em segundos te colocam de cabeça pra baixo, passam por túneis escuros, te tiram do assento e te põe a flutuar. Dá um frio na barriga indescritível, revira as vísceras. Deixa por vezes a sensação de quase tocar o céu, e te joga no precipício da fragilidade num piscar de olhos. Só que essa montanha-russa não para. Depois que começa, te leva a sentimentos tortos, do êxtase ao medo, para o resto da vida.
Ser mãe por si só já é um grande e ambivalente desafio. Segundo muitas delas, um tanto quanto solitário. No seu livro Mulheres visíveis, mães invisíveis, a argentina Laura Gutman, terapeuta especializada em maternidade, traz diversas verdades sobre a maternidade que ninguém conta. “Damos à luz. E, de um dia para o outro, nossa vida dá um pulo, às vezes de uma maneira não tão feliz quanto havíamos imaginado. A criança nos submerge em um mar de trevas, nos atira na solidão, longe do mundo onde acontecem as coisas interessantes, perdemos o bonde daquilo que havíamos acreditado que era a vida verdadeira. Desaparecem o mundo social, a autonomia, a liberdade, enfim, desaparecemos como indivíduos valorizados pelos demais”, descreve a autora.
E quando a maternidade acontece em meio a uma pandemia que provoca ainda mais isolamento social? Como dar conta dessa missão tão importante, de colocar seres realmente humanos no mundo se o “porto seguro” está desmoronando? Como lidar com a fusão emocional mãe-bebê em um momento duro, cruel e imprevisível como o que nos trouxe o Covid-19? É possível, mesmo fragilizadas, transmitir o carinho, proteção e segurança esperados, definitivos para a formação dessa pessoa?
Misto de emoções na primeira viagem
Foi nesse contexto que a Bianca Zasso, 33 anos, teve seu primeiro filho. O pequeno Joaquim nasceu em 21 de maio de 2020 e junto com ele uma nova Bianca, em um mundo em transformação em meio à pandemia. Tantas variantes juntas e uma vida nos braços, uma tarefa um tanto quanto desafiadora. “Minha mudança foi sutil, silenciosa e agridoce. Me vi dando adeus sem muita explicação e um novo eu surgir, ainda confusa sobre o que me aguardava na próxima curva”, comenta ela, que completa: “Talvez essa ‘perda de identidade’ seja o mais dolorido da maternidade, mais até que as noites insones”.
Bianca vinha de dois anos intensos cobrindo festivais, escrevendo reportagens e trocando com as pessoas, as coisas que mais ama em seu trabalho. Em setembro de 2019, descobriu a gravidez. “Teve início uma aventura mais louca que qualquer roteiro de filme”, descreve ela, que é jornalista e crítica de cinema, e mora em Santa Maria.
O parto não foi a melhor de suas experiências. Teve que fazer cesariana, diferente do que sonhava, e ainda enfrentar a solidão da sala de cirurgia. A companhia do marido não foi permitida por questões de segurança em função do Coronavírus. O puerpério também não foi fácil. Mas, segundo a comunicadora, o único clichê realmente verdadeiro dessa fase é que um simples sorriso banguela do filho cura tudo e religa os motores:
“Não há aquela plenitude das propagandas de fraldas. A magia da maternidade está em descobrir novas formas de sermos nós mesmas, mais livres de amarras e focadas no que realmente importa”.
Para ela, as mães não devem abrir mão do que as faz realizadas pelos filhos. “Devemos nunca desistir da nossa felicidade para sermos felizes ao lado deles. Ninguém gosta de estar perto de gente frustrada”, enfatiza Bianca. Desde a barriga, garante ter conversas sinceras com o filho, e espera não ser vista como heroína, mas como humana, passível de erros e em constante aprendizado. Se a experiência com o filho tem sido fácil? “Crianças são um desafio diário, cansativo e transformador. Arrancamos alguns fios de cabelo e gritamos com a cara no travesseiro muitas vezes. Faz parte. Surtar também é verbo de mãe”, completa.
Tudo ao mesmo tempo, agora!
O Coronavírus não mudou apenas a rotina das pessoas, mas também suas realidades sociais e econômicas. Uma pesquisa realizada entre abril e maio com mais de 2 mil mulheres de 18 a 49 anos pelo Instituto Guttmacher, organização norte-americana que trabalha para estudar, educar e promover a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, mostrou que mais da metade (52%) delas ou alguém em sua casa haviam perdido o emprego ou tiveram suas horas de trabalho reduzidas devido à pandemia. E as mudanças vão além. Por conta disso, mais de 40% das mulheres disseram ter revisto seus planos sobre quando ter filhos ou quantos filhos ter.
Além disso, segundo o estudo, mulheres negras (44%) e hispânicas (48%) eram mais propensas do que as brancas (28%) a afirmar que, devido à pandemia, elas queriam ter filhos mais tarde ou menos filhos. Assim como mulheres homossexuais e de baixa renda. Em síntese, o peso das desigualdades e disparidades parece ter piorado com a pandemia. A pesquisa foi feita nos Estados Unidos, mas se fosse aqui, não teríamos números tão diferentes.
Dar conta do segundo filho é mesmo mais fácil?
Não há dúvidas de que optar por encarar a maternidade, ainda mais diante de um contexto inédito e imprevisível, é um compromisso sem igual. Um exercício de doação e de amor. Apesar de toda aura Iluminada da chegada de um bebê, nem tudo são flores, segundo a Dóris Soares, mãe da Emanoela, de 13 anos, e do Benjamin, de 6 meses. “Nunca foi, né?! Ser mulher, negra, mãe, trabalhadora por si só já é duro. Decidir ter mais filhos, então, nem se fala”, garante.
Dóris Soares foi criada dentro do Movimento Negro de Uruguaiana e hoje integra o coletivo de mulheres negras Atinuké, na capital gaúcha. É psicóloga, trabalha no acolhimento institucional para população adulta, em geral, pessoas em situação de rua, e lançou recentemente o livro Poetas Brasileiros. Filha mais velha de Marisa Elizeth e José Luiz, ela entendeu o sentimento da filha Manu quando pediu irmãos, no plural, inclusive, por muitos anos. Depois de algumas tentativas, a boa notícia veio. O que ninguém esperava é que Benjamin nasceria no início de uma pandemia, logo após Porto Alegre fechar quase tudo. “Estávamos apavorados. O hospital mudou protocolos, não pude ter ninguém acompanhando o parto”, conta Dóris.
Um novo grande desafio começou com o fim da licença maternidade. Seu local de trabalho foi fechado nos últimos meses e ela foi informada sobre transferência para um abrigo a dois ônibus e 20 minutos de caminhada de distância de casa. “Está sendo bem difícil colocar a cara na rua desta forma, com grande exposição, ainda mais com um bebê em casa”, afirma.
Uma das alternativas para ajudar a encarar a nova realidade foi fazer parte de um grupo de mães que troca experiências nas redes sociais. Uma das articulações dessas mulheres tem sido pressionar a câmara de deputados para votar o Projeto de Lei 3.913 que amplia a licença maternidade durante o período da pandemia.
“Ser mãe e estar em licença maternidade não é e não foi só cuidados. Foi e está sendo extremamente hostil e estressante, porque tivemos e estamos em uma situação de calamidade, de total afastamento.”
Ela conta que a sensação vivida no momento da chegada do segundo filho é de que tudo se potencializou e que o contexto tornou as coisas mais pesadas: cansaço, irritação, choros, reclamações de todos os lados. Para enfrentar tudo isso, nada como uma rede de apoio. “Tem sido desafiador, mas felizmente conto, mesmo que a distância, com minha mãe e com o amparo de muitas mulheres, especialmente as do grupo de mães.”
Um mix de novos desafios
Além de dar conta dos filhos e do trabalho, as mulheres também absorveram o aumento da carga de afazeres doméstico com a pandemia. São quem, majoritariamente, limpa a casa e prepara as refeições, o que já se sabia de modo empírico, mas foi comprovado em pesquisa feita pela Febraban. O relatório aponta ainda que 71% das mulheres relatam que a vida escolar dos filhos recai somente sobre elas.
Mesmo tendo que dar conta de afazeres de casa e trabalhos mil, as mães que puderam cumprir com o isolamento social têm oscilado entre urgências e brincar de lego, pintar e socorrer os choros. As que não tiveram chance de ficar em casa, enfrentaram o desafio de arrumar alguém com quem deixar os filhos, somado ao sentimento de culpa. Se você é mãe, deve ter se deparado com a sensação de caos neste ano.
“Sinto falta dos dias com cheiro de cama arrumada, quando eu lia jornal ao acordar, passava fio dental depois de comer e demaquilante antes de dormir (mas naquele tempo eu não escrevia poesia”. Do livro Azul de um minuto – poemas entre mãe e filho, de Luisa Benevides. Como a autora diz, “mães trazem os filhos ao mundo para que vejam as flores”. Que isso logo volte a ser possível.
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