Atitude, Vida

Nem girafas, nem manequins

Como mulheres altas encaram obstáculos
e estereótipos impostos pela sociedade

No Brasil, a média de altura das mulheres está em torno de 1m60cm, e alguns estudos têm apontado que estamos crescendo, ampliando essas marcas em todas as faixas etárias. Mas, ainda assim, somos um país de “baixinhos e baixinhas” se compararmos à estatura da população em outras nações – na Holanda, por exemplo, a altura média feminina fica em 1m70cm. Nesse cenário, as mulheres brasileiras altas lutam diariamente contra estereótipos e pelo respeito a suas particularidades. Nem girafas, nem manequins. A altura não as define.`

Miri˜ã Antunes mede 1m78cm e n˜ão abre m˜ão dos sapatos de salto alto.

Autoestima nas alturas

Miriã Antunes vem de uma família de mulheres altas. A mãe tem 1m75cm, a irmã mais velha, 1m85cm, e a irmã gêmea, 1m79cm, um centímetro a mais do que ela. E essa característica ajudou a moldar certos comportamentos dessas relações públicas e empresária de Porto Alegre, mas nada absolutamente que tenha sido causa ou conseqüência de sofrimento. O fato de ter uma família de mulheres altas talvez tenha contribuído na aceitação da própria estatura: Miriã gosta de ser uma mulher alta:

– Ser alta é sobre ser diferente, não é sobre ser algo ruim. Você pode ver pelo copo meio cheio: você se destaca no meio da multidão e alcança as coisas mais altas. Ou pode ver pelo copo vazio: você não tem como se esconder e caber em lugares pequenos. Particularmente, gosto de ser alta, pois aprendi que aceitar dói menos do que lutar com os centímetros a mais que você não vai perder. 

Miriã com as irmãs, todas com mais de 1m70cm.

A estatura grande esculpiu também preferências. Miriã nunca se viu namorando homens mais baixos do que ela. Então, o primeiro namorado da empresária tinha 1m94cm, e o atual , 1m95cm de altura. Essa quase  “regra” nas relações amorosas também contou com as influências da vaidade. Miriã não abre mão de usar salto alto, e um namorado mais baixo provavelmente exigiria mais parcimônia na escolha dos sapatos. Não bastassem as limitações que as mulheres altas enfrentam para encontrar roupas e calçados adequados. Miriã calça 38 e nem sempre consegue combinar seu número com o modelo que gostaria de comprar. 

No vestuário, mais complicação. Via de regra, as confecções não contemplam as necessidades de mulheres altas. Miriã já comprou três vezes o mesmo modelo de calça porque não encontra com facilidade uma peça que dê conta de seu um metro de pernas. Apesar desses pequenos perrengues do dia a dia, ela não coloca a altura avantajada como problema e dá o recado às altas:

Miriã, que mede 1m78cm e sua sócia na Plural, Giulia Silvestre, que mede 1m51cm.

– Precisamos pertencer mais a nós mesmas, sem medo do que vão falar, ou se vão nos olhar mais, por sermos as mais altas em diversos ambientes. Aproveita que você chama atenção pela altura e deixa sua marca pela sua segurança, competência e personalidade. Aceita que para de doer. Aceita que cura! A sua aceitação de si mesma e a dos outros.

Uma nova imagem sobre si mesma

Há pouco mais de uma década, Marina Lorenzoni Chiapinotto, 37 anos, ressignificou a relação que tinha com o próprio tamanho. Dona de 1m81cm de altura, a jornalista e fotógrafa, atualmente coordenadora do curso de Fotografia da Unisinos, sempre entendeu a estatura alta e magra como um traço definidor de sua identidade. E isso nem sempre foi muito pacífico. Nos tempos de escola, Marina, por ser sempre a mais alta da turma, sofria com apelidos pejorativos e desagradáveis. Como reação, muitas vezes agrediu colegas e teve de encarar os serviços de orientação pedagógica da escola para explicar o que havia motivado as agressões. Ser alta e magra a colocava numa condição destoante entre os colegas.

– Eu era a magrela, a girafa, a esquisita. Então, muitas vezes, eu reagia com violência a isso. Foi algo que me causou muito sofrimento – conta.

O amadurecimento e muitas sessões de terapia foram dando conta de reorganizar o olhar da jornalista sobre a própria imagem. Profissionalmente, Marina vê que a fartura de centímetros pode ser uma aliada. Fotógrafos mais altos têm vantagens, por exemplo, em situações em que a disputa pela melhor imagem exige enfrentar multidões. A altura também ajuda a abrir espaço nos ambientes de trabalho, que apesar de avanços, ainda mantêm traços do machismo estrutural. 

– Sinto que, se comparar com outras colegas mulheres, sou um pouco mais respeitada nos ambientes de trabalho por conta da minha altura. Até porque, há muitos homens mais baixos do que eu. Então, a altura impõe certo respeito, mas, ao mesmo tempo, intimida. É até engraçado parar para pensar nessa questão – diz.

Se na vida profissional, a altura se mostrou rapidamente uma vantagem, em outros aspectos Marina precisou de mais tempo para mudar o olhar sobre essa característica física. Somente em torno dos 30 anos que ela passou a enxergar a estatura alta como algo positivo. Isso implicou autoconhecimento e um descolamento total de estereótipos e preconceitos que ela mesma se viu presa ao longo da vida. A generosidade ganhou o auto-olhar:

– Eu tinha uma visão superdistorcida sobre mim mesma. Cresci me achando feia e estranha e achando que ser muito alta e magra era um problema para a minha imagem. Isso foi ressignificado.

Mundo pequeno para uma grande mulher

A altura da jornalista Caroline Helena Strussmann, 45 anos, já virou “atração turística”, uma história que ela mesma conta aos risos e sem qualquer indício de que a tenha traumatizado. Em uma de suas viagens ao Rio de Janeiro, ela foi fazer um passeio de barco pela Baía de Guanabara. A bordo, ela e mais um grupo de chineses. Sem muito jeito, os turistas asiáticos pediram para fazer uma foto ao lado da jornalista. O motivo? Ficaram impressionados com o tamanho dela. Carol tem nada menos do que 1m83cm.

– Foi muito engraçado, porque eu realmente era muito mais alta do que eles. Parecia a Branca de Neve com os anões – diverte-se.

Carol convive muito bem com a estatura imponente. Claro, como outras mulheres com essa característica, ela enfrenta alguns desconfortos, a falta de espaço nos meios de transporte e certa dificuldade para comprar roupas. Na adolescência, era a mãe de Carol quem fazia as roupas da filha, tamanha a dificuldade de encontrar peças adequadas. Sapatos? Carol virou cliente assídua de uma loja que tinha como público as travestis. Ela comprava os pares e os adaptava ao seu gosto.

Carol entre os pais de uma amiga.

Tudo isso, ela driblou e dribla com muito bom humor. A altura é encarada como vantagem diante do estilo de vida que decidiu levar. Além de jornalista, ela se dedica ao ciclismo. Pedala pelos mais variados cenários e, não raro, faz essa aventura sozinha. Ser uma mulher grande, acredita, dá mais segurança.

– Acho que, olhando o meu tamanho, o assaltante pensa duas vezes antes de me atacar – avalia.

Mas mesmo na modalidade esportiva que a encantou, Caroline percebe que há um estereótipo pré-definido que não contempla sua altura. As bicicletas femininas são sempre menores, pequenas em relação aos veículos fabricados para homens. Essa constatação também motiva uma reflexão acerca da inclusão das mulheres altas nos esportes, para além do basquete e do salto em altura.

Aquela encolhidinha para caber na foto

– É engraçado até, porque muitos dizem que a bicicleta foi importante na emancipação da mulher, quebrou paradigmas, aquela coisa de a mulher colocar “algo entre as pernas” (por muito tempo, as mulheres só andavam sentadas de lado nos quadros das bicicletas). No entanto, ela ainda está revestida de preconceitos como esse. Só bicicletas pequenas são para mulheres, as grandes não? Temos ainda esse probleminha “técnico” – analisa Carol.

O que vem de baixo não atinge mais

Nem 1m70cm, nem 1m80cm. Carmina Monteiro Ribeiro tem nada menos do que 1m90cm o que determinou uma vida praticamente inteira como a pessoa mais alta entre suas relações. Professora de inglês em Curitiba, desde os oito anos, ela não só era a mais alta da turma como mais alta do que os professores. Ter uma estatura tão fora “dos padrões”, requer um bocado de paciência e jogo de cintura. No final de 2017, por exemplo, quando Carmina estava no avião rumo a um intercâmbio na Holanda – curiosamente um dos países com maior média de altura – ela não entrava na cadeira por conta do tamanho do quadril, mesmo tendo comprado o assento mais espaçoso. 

Desde pequena Carmina já tinha uma grande diferença de altura dos coleguinhas.

Encontrar roupas e sapatos é outra gincana. Como calça 45, nem pares sob encomenda são fáceis de conseguir. Mas há suas vantagens também em ver o mundo do alto de 1m90cm. Circular e respirar em ambientes lotados é mais confortável do que para baixinhos. Assistir a shows e peças de teatro tende a ser uma experiência sem riscos de obstáculos visuais à frente. O tamanho generoso também faz com que Carmina se sinta mais segura ao andar nas ruas, porque ela não se vê como um alvo muito vulnerável, pelo menos no que diz respeito a investidas de assaltantes. Já quanto à violência do preconceito, nem sempre ela saiu ilesa. A estatura já fez muita gente pressupor que Carmina sequer poderia ser uma mulher cis.

– Um dia, eu estava dançando com um cara que conheci numa festa, lá pelos meus 20 anos. Eu estava gostando da nossa interação, conseguindo me soltar e me sentindo confiante. Ele me beijou, saiu para usar o banheiro e, quando voltou, disse que não queria mais ficar comigo porque eu não era “mulher de verdade”. Acho que ele quis dizer que eu não era uma mulher cis de um jeito bem torto. Fiquei muito confusa e mexida, tanto com a rejeição quanto com o motivo.

Essa foi uma das situação que expuseram à Carmina as fragilidades e os complexos da sociedade em questões de gênero, masculinidade e feminino também. Não é nada incomum entre mulheres altas ouvir “como vai arrumar namorado?”, “Não usa salto porque vai ficar mais alta que o marido”, sem contar que o tamanho avantajado não raro pressupõe comportamento agressivo. Em outras palavras, acredita-se que delicadeza e feminilidade não podem estar em uma mulher que tenha mais de 1m80cm. Carmina fez desse limão uma limonada.

 – Aprendi a ver meu tamanho como uma coisa boa em minha vida amorosa, porque serviu de peneira quando estava solteira. Sempre coloquei minha altura na descrição do Tinder, por exemplo, pra que nem tivesse match com quem tivesse problema com isso. Como prefiro estar com pessoas que não sejam superficiais a ponto de se desencantarem com alguém por causa de algo como altura/peso, vejo isso como algo positivo. Mas claro que nem sempre foi assim. Essa percepção veio depois dos meus 20 e poucos anos. Antes disso, tinha muito mais insegurança e não via nenhuma parte boa nessa situação – conta.

Na escola, como aluna, Carmina não se recorda de ter sofrido bullying por conta da altura. Os conflitos que teve em relação à própria estatura têm a ver com atitudes que encarou de adultos não de crianças, reforça. Era querida pelos colegas e amigos e disputadíssima pelos times de basquete e vôlei, modalidades que ficaram de lado por conta da paixão pela dança. Como professora, ela ainda convive com a curiosidade despertada por sua altura, mas semeia entre os alunos uma outra forma de pensar e agir diante do que não é considerado um padrão:

– Costumo lidar com naturalidade e leveza com as perguntas e, quando sinto que ultrapassam algum limite, converso com meus alunos sobre isso. Já falei muito que queria que eles se interessassem por quem eu sou de verdade, que perguntassem sobre meus gostos, hobbies, minha família, meus amigos, e não apenas sobre minha altura. Dou outros exemplos de pessoas que têm algo fora do padrão sobre a aparência delas e eles costumam entender. Acho isso bem importante para que não se tornem esses adultos que fazem perguntas e comentários perturbadores sobre a “casca” das pessoas, que não é o que mais importa sobre elas.

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