Vida

O feminismo chegou ao puteiro

“Comecei a pensar o feminismo e a prostituição a partir de um olhar feminista”

As qualificações de Monique Prada, trabalhadora sexual, escritora e ativista, não podem ser descritas em um parágrafo: foi uma das fundadoras da CUTS (Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais), hoje faz parte da Coordenação da Anprosex (Articulação Nacional de Profissionais do Sexo) e seu livro, Putafeminista, lançado em 2018, serviu como pano de fundo da peça de teatro Meretrizes, exibida no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, e na região Metropolitana em setembro. 

Mas uma conversa com ela, 50 anos completados em 9 de julho, mãe de três e filha mais velha de uma família com dois irmãos, revela mais. Contestadora, com um poder de comunicação nas alturas, Monique disserta sobre a relação entre feminismo e o trabalho sexual – o putafeminismo, um termo usado, mas que não foi criado por ela.

Monique conta que chegou a sofrer chantagem, quando sentiu a necessidade de “sair/ser tirada do armário”, e, foi quando começou a pesquisar e ler sobre feminismo, que brotou o putafeminismo. “Nunca tinha pensado em feminismo. Comecei a ler sobre trabalho sexual e sobre feminismo no site da Marcha Mundial das Mulheres. E aquilo era muito incrível, era uma luta por direitos. Aí, comecei a pensar sobre essa questão, até o momento em que elas [as feministas] pensavam em mim como uma trabalhadora sexual. E como eu não tinha direito à voz: era como se não tivéssemos consciência do que estávamos fazendo”, esclarece Monique, que acredita que o feminismo convencional, o que se diz radical, “tira completamente a voz, não do nosso grupo apenas, mas de outros grupos subalternos”. “Questionei qual era o meu lugar como trabalhadora sexual e feminista. E comecei a pensar o feminismo e a prostituição a partir de um olhar feminista. Acho que o putafeminismo é muito isso, um feminismo de uma categoria, no caso laboral, que vem se construindo”

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Sexualidade depois dos 50, machismo e prazo de validade

Ela, que começou na prostituição (hoje prefere a denominação trabalho sexual às outras, por enfatizar a condição da atividade) aos 19 anos, com anúncio em jornal, parou aos 24 e voltou aos 36, casada, em função de dificuldades financeiras, agora, aos 50, vive da escrita e do trabalho sexual presencial e Privacy (conteúdo por assinatura). Monique se questionou recentemente nas redes sociais sobre como é voltar aos 50. “A sociedade determina um ‘prazo de validade’ muito rigoroso, muito cruel para as mulheres. Se, até os 30 anos, você não se casou, não se formou, não tem uma vida assim, assado, não largou o trabalho sexual, o ‘prazo’ começa a ser uma preocupação. E isso bate em todas […] Ninguém questiona o ‘prazo’ de um homem. A sociedade não pensa a mulher como pessoa na maior parte do tempo”, diz, revelando que prepara justamente um livro novo a partir de relatos sobre o assunto. 

Opção laboral

A prostituição era uma opção laboral melhor que outros trabalhos. Não tenho Ensino Médio. Seria trabalhar com limpeza, em locais precários. Na época, antes de ser trabalhadora sexual, cheguei a fazer seleção em uma cooperativa de limpeza. Entre todos esses, o que mais me permitia liberdade de horário, eu já tinha filho na época, e uma remuneração justa, era o trabalho sexual. Eu não seria feliz limpando casas. Acho que é possível, mas eu não seria. 

Monique, de batismo Luísa, e que escolheu o Monique por causa da modelo Monique Evans, então sua ídolo, destaca que “seu putafeminismo”  ficou mais evidente quando saiu de Porto Alegre e começou a viajar o País e conhecer outros meios e outras ativistas que exerciam o trabalho com mais precariedade, que entraram nesta função de outra maneira, e estavam unidas, sendo feministas, apesar de não saberem disso. Elas diziam `tenho medo das feministas` mas eu dizia que a gente era feminista”.

Não sei agradar pessoas

Eu não diria que tenho um talento especial para ser acompanhante, sou péssima na função de sedutora. Gosto muito de sexo, só não me considero uma sedutora. Se precisasse trabalhar em uma boate, por exemplo, aquele jogo da sedução, de ir atrás do cara, agradar, ser submissa, que é característico quando a gente está num ambiente com muitos homens (eles vão lá para serem agradados e escolher quem agradou mais)… Bem, eu não sei agradar pessoas. Então, pra mim a internet é o grande lugar. 

Monique conta que nunca chegou a declarar ao pai e à mãe que era uma trabalhadora sexual. “Sempre fui uma menina, depois uma mulher bastante livre sexualmente, nunca dei muita satisfação sobre isso. Sou a mais velha dos irmãos, então a gente teve bastante desentendimento por isso, mas, com o passar dos anos, nos damos muito bem. Todos eles certamente leram meu livro, principalmente quando me tornei uma ativista, que, pra mim, foi um caminho sem volta, porque me revelei quem era. Não que seja uma coisa simples, mas foi uma decisão necessária me posicionar para não ter aqueles segredos que te prendem e acabam com a tua vida.” 

Para mim, casamento é atrelado à insegurança e violência.

É mais seguro ser prostituta do que ser esposa no Brasil, e quem me trouxe isso pela primeira vez foi a ativista Indianara Siqueira, em um debate que a gente estava. Porque são os mesmos homens  – a natureza do contrato é que é diferente. Então, as mulheres estão sendo mortas pelos parceiros em quem deveriam confiar. E a sociedade como um todo tem como muito perigoso o trabalho sexual porque a gente está com um desconhecido por, no máximo, 2 horas, com condições acertadas antes do trabalho e, quando se vê um assassinato de uma trabalhadora, normalmente ele é perpetrado pelo companheiro dela. São as lendas que se mantêm sobre o patriarcado, sobre segurança.

Putas & santas

Monique explica, citando a antropóloga Dolores de Viana, sobre a função do estigma para condicionar o bom comportamento das outras mulheres. “É como se houvesse dois lugares: o das mundanas, o das prostitutas – e você não pode se colocar nele porque seria muito inseguro –, e o das mulheres decentes, que são pra casar, que estão em segurança. Então, a gente levanta um muro entre elas. Dolores diz que isso não tem nada a ver com o fato de algumas mulheres cobrarem ou não por sexo, mas tem a ver com o patriarcado querendo criar uma diferença entre as mulheres“. Monique faz coro à ideia da antropóloga de que isso, no fundo, não tem a ver com a prostituição. “Porque você vai ser considerada essa mulher mundana, puta, independentemente de cobrar ou não. É um protocolo que te coloca em risco, é aí que você fica atrelada à violência, mas não porque a sociedade diz que vai ser violentada se pular essa cerca”, coloca.   

O feminismo chegou ou não ao puteiro?

Sim, mas não através das feministas tradicionais, que chegavam lá querendo agredir. Eu não sei como uma mulher que tá do lado de fora vê isso, mas elas tinham a ideia de que estavam defendendo as mulheres que estavam lá dentro, mas não estavam, estavam agredindo. Ele chegou através das próprias prostitutas debatendo, entrando, discutindo e falando sobre isso. Hoje, dentro e fora do movimento tu vais ver a maior parte se declarando feministas.

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O que mudou desde a publicação de Putafeminista

Conforme Monique, durante a pandemia de Covid-19, os movimentos das trabalhadoras sexuais se fortificaram no mundo, especialmente onde não são legalizados, facilitando o acesso a auxílio às mulheres em função de questões imigratórias. “Outra grande mudança que ocorre é o trabalho migrar grandemente pro virtual. Mulheres que exerciam esse trabalho mudaram para serviços como Privacy, Only Fans e Câmera Privê, que estouraram no começo da pandemia. Com o excesso de pessoas, não só mulheres, mas homens também acessando essas plataformas, hoje não é algo estupidamente errado como era no começo da pandemia, mas uma alternativa de trabalho. E ainda precisamos começar a usar mais as plataformas de reuniões, porque para a gente se reunir é muito caro, e, quando tem um meeting, a gente se encontra na hora com trabalhadoras de todo o mundo”.

Internet, putafeminismo e controle de narrativa

Há 10 anos, se uma foto íntima vazasse, algumas mulheres se suicidariam. Agora, é como inverter esse jogo de poder: eu estou usando as minhas fotos, eu estou vendendo as minhas fotos. Isso é o que mais me bate quando penso que a gente está mudando isso em vários contextos, quando tu podes ser a dona do teu trabalho. A gente está no capitalismo, então não pode ter grandes ilusões, mas, pra mim, é muito positivo que alguém possa vender suas fotos em vez de ser chantageada pela existência delas.

Créditos das fotos: Monique Prada
Capa: Veneta

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