O papel da mulher na moda

Mulheres em uma fábrica têxtil

Por Lívia Pinent*

Quando ouvimos falar de moda, o gênero feminino logo vem à mente e por inúmeros motivos. Pode ser porque lembramos de Coco Chanel e da revolução que ela conduziu nas roupas e nos negócios. Ou porque lembramos das nossas mães e avós nas suas máquinas de costura. Ou ainda por causa da conotação negativa da moda, e bastante associada ao feminino, que é a frivolidade. 

A palavra moda é feminina. A moda. Ela parece um reino nosso por direito. Mas sinto dizer que ela não é e nunca foi nossa. Somos importantes agentes, mas na maioria das vezes apenas orbitamos o entorno desse mundo ainda bem patriarcal.

Ler mais: O que moda e feminismo tem a ver?

No Brasil, de acordo com a ABIT (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção), 75% da mão-de-obra da indústria têxtil é feminina, e destas, apenas 15% estão em posições de liderança.(1)

Eu não tenho os números absolutos, mas não é difícil imaginar aqui a discrepância na porcentagem de homens na indústria da Moda que ocupam cargos de chefia.

Ainda é raro encontrar uma colega na mesa de negociação. Quando as mulheres estão no jogo, elas estão no lado artístico e operacional (design, marketing, secretariado, etc), e não do lado do juiz. No meu trabalho, eu tenho o privilégio de conhecer várias mulheres incríveis no setor. Gestoras de marcas sustentáveis, fundadoras de startups disruptivas. Mas na triste maioria das vezes, tem um homem decidindo por elas. Um co-fundador, um presidente, um investidor, o que seja. A palavra final vem do homem lá de cima.

Eles são os responsáveis pela parte séria do negócio. Deixem as futilidades para as meninas. 

Mesmo internamente, a moda é considerada fútil. Por isso que existe uma diferença bastante demarcada no sistema entre a Moda/marcas e a Indústria Têxtil, essa dominada por negócios familiares liderados por homens.

Quer um exemplo? A Prada.

Miuccia Prada divide o comando da empresa centenária com o seu marido, Patrizio Bertelli. Ela é a diretora criativa enquanto ele cuida dos negócios, sendo ambos CEO da holding. Miuccia herdou a Prada da sua mãe, Luisa, que só assumiu a empresa depois do pai morrer, já que o velho Mario Prada não queria nenhuma das mulheres da família trabalhando na empresa. Em 1978, Luisa se afasta da Prada e Miuccia assume já com Patrizio ao lado dela.(2)

Se você tiver tempo e curiosidade, faça esse exercício: jogue o nome das grandes marcas de moda no Google e procure o CEO.

Você continua achando que a Moda é coisa de mulher?

Essa distinção de gênero da moda vem daquilo que entendemos como a origem da moda em si. No pós-Revolução Industrial, os homens da aristocracia tiveram que, pasmem, trabalhar. Esse novo conceito exigia uma nova vestimenta também, já que aquelas roupas ricas em detalhes e acessórios, que levavam horas para serem vestidas, não faziam mais sentido. Surgiram os Dandies em Londres e toda uma era de alfaiataria mais sóbria, que passou a ser associada com a masculinidade.

Enquanto isso, para não perderem o status naquele mar de fraques e cartolas pretas, os aristocratas passaram o bastão da vestimenta como diferenciação social para as suas mulheres. As roupas e acessórios femininos passaram a ter mais relevância do que os masculinos, de uma perspectiva estética e simbólica. Foi nessa época que a moda virou moda, que a sazonalidade dos penteados, estampas, desenhos e formatos passou a ser observada, registrada e negociada. Surgiram os coiffures, as modistas, o jornalismo de moda, e Paul Poiret, o primeiro estilista de alta-costura em Paris.(3)(4).

Ao mesmo tempo em que a aristocracia mexia nos papéis da moda, a classe trabalhadora também migrava, mas sem tanto glamour e nada de futilidade. Partindo do campo para a cidade, e quase sempre em péssimas condições, um volume gigantesco de mulheres chegava às fábricas têxteis de cidades como Manchester, na Inglaterra, Nova York, nos Estados Unidos, e até aqui em São Paulo.

Desde o início, essa mão-de-obra feminina foi marcada pela exploração. A situação piorou após a Primeira Guerra, que reduziu a força de trabalho masculina e comprometeu a renda da classe trabalhadora. O emprego na fábrica se torna o único possível para mulheres e crianças, sim crianças, conjunto esse que formava 77% da mão-de-obra têxtil na Inglaterra em 1838. (5)

Como vocês devem imaginar, a situação laboral era crítica. A jornada podia ser de até 16h, em ambientes nada salubres. Foram essas mulheres da classe trabalhadora da indústria têxtil que encararam de frente o ciclo exploratório. O movimento pelos direitos dos trabalhadores no mundo todo surge a partir das manifestações delas, que também originaram o Dia Internacional da Mulher.

Quase 200 anos depois, a situação no Sul global não é muito melhor do que na Europa pós-Revolução Industrial. Em Blangadesh, o segundo maior exportador mundial de roupas, as mulheres são 85% da mão-de-obra, mas seus salários não chegam a 60 euros por mês, bem menos do que o necessário para cobrir as necessidades básicas de um trabalhador do país, o que seria em torno de 100 euros. É comum que as jornadas incluam entre 60 a 140 horas extras que acabam não sendo recompensadas, em demonstrações de abuso de poder e exploração. (6)(7)

Nós, mulheres, somos 80% da mão-de-obra da moda mundial, mas com uma maioria esmagadora de trabalhadoras exploradas. O negócio da Moda vale 3 trilhões de dólares. Empresas como a LVMH (dona da Dior, Louis Vuitton e outras) valem mais de 300 bilhões de dólares. Qual o impacto que isso teria na economia mundial se a Moda fosse mesmo uma indústria liderada por mulheres?

O que significaria para a economia mundial se todas as trabalhadoras têxteis recebessem salários dignos? O que mudaria se houvesse representatividade dessa maioria feminina nos cargos decisores da Indústria Têxtil?

O dinheiro mudaria de mãos.

Mudaria todo o cenário. Mudaria a moda. Mudaria o mundo.

Mulheres em cargos de liderança já provaram ser mais empáticas, usar práticas mais sustentáveis, investir em crescimento orgânico, ao contrário do predatório. E isso é tudo o que o mundo precisa.

Sem querer ser otimista, mas já sendo, eu estou ansiosa para encontrar mais mulheres do que homens na lista de CEOs dos conglomerados de moda. E já estou trabalhando para isso.

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Referências:

(1)  Fashion Revolution.(2019). Carta Capital. “Mulheres da moda, uni-vos”. Acesso em https://www.cartacapital.com.br/blogs/fashion-revolution/mulheres-da-moda-uni-vos

(2) Paranchini, G.L. (2014). Vita Prada: personaggi, storie, retroscena d’un fenómeno di costume. Milão. Baldini&Castoldi.

(3) Veblen, T. (1899/1983). A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Abril Cultural.

(4) Baldini, M. (2015). A invenção da moda: as teorias, os estilistas, a história. Lisboa: Edições 70.

(5) Hobsbawn, E. J. (2020) Da Revolução Industrial inglesa ao imperialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

(6) Fashion Revolution. (2015). “Exploitation or emancipation? Women workers in the garment industry” Acesso em: https://www.fashionrevolution.org/exploitation-or-emancipation-women-workers-in-the-garment-industry/

(7) Andrew Morgan (2015). The True Cost, documentário. Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=nxhCpLzreCw

* Lívia Pinent é antropóloga e doutora em Comunicação. Pesquisa práticas de consumo e inovação em moda, e contribui para a Fala Feminina com artigos e estudos estratégicos.

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