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Queridos, mamãe é gay

Antes, eram os filhos cheios de dedos para contar sua identidade de gênero. Agora, as mães contam o que lhes vai na alma. Quando as coisas deixam de ser segredos, que alívio!

Quantas mulheres sentem-se seguras com suas próprias escolhas? Nem vou falar de felicidade, esse estado difícil de ser alcançado e que pode se constituir de minutos diários. Falo da segurança de permitir-se ser o que se é. E se, depois de um casamento hétero, com filhos, o amor vier de uma pessoa do mesmo sexo?

E, a grande questão, como contar aos filhos? Nada fácil. Nem tão difícil!

Falamos com três mulheres que estão bem com suas companheiras e filhos. Até porque, se as mães sentem o que vai no coração dos filhos, o mesmo se dá com eles.

Cheia de dedos, uma de nossas entrevistadas aproximou- se do filho para contar sua escolha. Resposta dele: “Ah, que tu és sapatão? Eu já sabia”. 

Então, tá. Feliz por trazer essas gurias, tão cheias de vida, para nos contarem como é viver a partir das suas escolhas.

Boa leitura!

Fátima Torri, editora

Núbia e o filho Joshua

Núbia Quintana, 42 anosAtriz, palhaça, bonequeira, ativista e historiadoraMãe do Joshua

A homoafetividade é o que somos. Não escolhemos. Me vejo como bissexual desde muito jovem e, dentro de alguns dos guetos que frequento, isso nunca foi segredo. Já no mundo careta e normativo, tudo é mais complicado.

Fui mãe muito cedo, aos 19 anos. E casei também muito cedo. Meu ex sempre soube que eu gostava de meninas e de meninos, mas ainda não havia tido a oportunidade de viver algo. Nunca fui a mais festeira ou a mais sexualizada das mulheres, então não corri para encontrar romances. Deixei com o tempo as coisas do tempo.

Como era de ser, o casamento não durou muitos anos. Sempre foi claro para nós: durante a primeira infância das crianças, tínhamos de ficar juntos para que elas fossem seguras. Marcelo, meu ex-marido, tinha uma menina, a Maria Fernanda, da mesma idade que meu Joshua. Ambos eram como irmãos, embora fôssemos pais solteiros ao nos casarmos.

Quando nos separamos, devido à minha instabilidade econômica, o Joshua ficou com meus pais. Eu morava quase ao lado.

Contar para o Joshua foi algo natural. Aos oito anos dele, eu resolvi contar que estava namorando uma menina. Fui, cheia de rodeios, e recebi como resposta: “Ah, tu tá me falando que é sapatão? Eu já sabia”. E assim encerrou-se o assunto.

Atualmente, namoro uma mulher, e ele dá muito apoio. Costuma não se envolver, mas da Natália ele gosta muito. Sigo tendo dificuldade com os mais velhos e parentes distantes, para os quais nem tenho vontade de falar nada. Não me interessa se vão ou não aceitar, não acho que seja assunto de debater. Cada qual com a sua identidade sexual, ninguém necessita de aprovação. Mas vejo que o preconceito maior não está no gênero, e sim na idade. Minha companheira é muito mais nova, e percebo que, isto sim, incomoda as pessoas. Não o meu filho, que foi educado num ambiente de liberdade onde amigos gays tinham seus pares, [assim como] amigas trans (tenho muitas), e [esses] fizeram parte da vida dele desde sempre. E, principalmente, o diálogo de igual para igual sempre foi parte forte da nossa relação de mãe e filho. Joshua reage da melhor forma aos meus amores e tenta ser presente, ao seu jeito.

Michelle e Angelita

Michelle Fernanda Duarte Barbosa, 45 anosProfessoraMãe da Mariane e do João Vitor

Eu não queria namorar, não me chamava a atenção essas coisas. Eu queria estudar, ser professora e, com treze anos, eu fui para a sala de aula. Estudava pela manhã e dava aula à tarde.

Meu ex-marido morava na minha rua. Fui professora da sobrinha dele, e sempre que ele a levava para a escola, me oferecia carona, e eu recusava. Mas, um dia, choveu e eu aceitei. À noite, ele chegou na minha casa e nunca mais saiu.

Eu morava com os meus avós, e eles se encantaram com o rapaz. Depois de algum tempo, eu também. Com 16 anos, eu casei meio que sem saber como, pois meus avós foram morar na praia, e eu fiquei sozinha em casa. Num final de semana, fomos ao litoral, e o ex conversou com meus avós, e quando voltamos, ele não foi mais embora. Assim se deu meu casamento.

Aos vinte anos, eu tive a minha primeira filha, que foi muito esperada e desejada por nós, a nossa Mariane. Aos 23, eu tive o meu segundo filho amado, o João Vitor, meu amigo. Meu casamento era normal, vivíamos bem, mas era isso. Casa, filhos, marido, e eu fui engordando, engordando. De 57kg eu fui para 90kg em alguns anos.

Desde que eu tinha 16 anos, o ex falava sobre ter duas mulheres na cama. Eu não aceitei, não queria, mas, um dia, acabou acontecendo e foi muito ruim, nunca mais eu quis. Os filhos foram crescendo e eu retomei o magistério. Minha relação com o ex era extremamente de cumplicidade da minha parte, eu sempre contei tudo. Então, eu fui estudar à noite e, depois de 15 dias de aula, chegou uma colega nova e, quando eu coloquei os olhos nela, tudo mudou… Eu me encantei de uma forma que não tinha explicação. Eu cheguei e contei para ele sobre a tal colega e, para minha surpresa, ele começou a instigar essa situação.

Eu passava o dia fazendo as coisas da casa e cuidando dos filhos, à tarde, eu fazia lanche para vender à noite na escola. Quando ia chegando a hora de ir, eu ficava radiante, eu ia estar com a colega. Ela nem sabia que eu existia; então, veio uma aula de didática da religião e tínhamos que escolher uma colega e falar. Eu pensei: hoje ela vai saber que eu existo. Quando o professor me chamou, eu falei um monte de coisas lindas e, no final, eu disse: “Eu vejo um potencial incrível nessa menina, eu sei que ela vai longe, e é a fulana”. Ela veio até mim e me abraçou, por muitos anos, aquele abraço ficou em mim, ficamos amigas, muito amigas, mas só isso. Ela vivia dentro da minha casa e na minha vida, mas nunca tive coragem de dizer nada.

O tempo passou e eu descobri a internet. Conheci algumas pessoas, e uma delas, que é minha amiga até hoje, me disse: “assiste a tal série e tu vai entender o que está acontecendo contigo”. The L Word. Eu assisti. Como eu queria viver aquilo! E, ao mesmo tempo, eu pensava: “Como? Eu sou casada, tenho filhos, não, eu não”. E com esse dilema eu vivi muitos anos casada com um marido excelente para a sociedade e, para mim, não. Ele era maravilhoso quando eu fazia as vontades dele, mas quando não, era complicado. Ele sempre foi excelente pai e é até hoje. Mas estava cada vez mais difícil viver com ele… As tais festinhas se tornaram mais frequentes, e uma das mulheres me disse que eu não merecia passar por aquilo.

Eu conheci um casal de gurias que viviam juntas há 14 anos, e elas começaram a frequentar a minha casa. Me ajudaram muito a compreender que eu não estava errada por querer mudar. Eu não tinha coragem, não sabia como. Meus filhos cresceram, a internet estava cada vez mais frequente na minha vida, então, um belo dia, eu recebi um MSN de uma menina. Começamos a conversar. Ela era tão querida, sabia me fazer falar, e eu fui contando tudo o que se passava comigo. Ficamos conversando por seis meses, todos os dias, e eu dizia para ela: “Guria, vai procurar alguém da tua idade, eu já sou velha para ti e cheia de problemas, e tenho dois filhos”. Ela me respondeu: “Tu vai ser minha, e teus filhos também”. Veio o Natal, ela ligou e disse para meu ex que ela ia me tirar dele, que ele aproveitasse o último Natal comigo. Gente, aquilo foi forte. Minha vida virou de cabeça para baixo. Eu queria que fosse com ela, e foi…

Com a ajuda de uma prima e do meu filho, eu saí de casa sem nada, apenas com algumas roupas, no dia 10 de junho de 2010, e fui para Vacaria. Eu nunca vou esquecer da recepção que eu tive. Foi incrível… Meus filhos não vieram embora comigo, a Mariane se revoltou, disse que eu não era mais mãe dela. O João era meu porto seguro, ele me ajudava e me dava forças e coragem até o último minuto. Mas, quando ele disse que não ia comigo, eu desisti, e ele me abraçou e disse: “Mãe, vai, tu tens que sair desse inferno aqui”! Eu engoli o choro, ergui a cabeça e fui…

Feliz eu era, mas nunca completa, pois meus filhos não estavam junto comigo. Morei um ano com ela, que me esperou com a casa alugada e mobiliada para nós. Tudo era perfeito, trabalhávamos bastante e éramos felizes.

Quando eu saí de casa, eu não tive apoio dos meus familiares, até porque eu nunca me queixei de nada para a sociedade, éramos um casal perfeito e feliz… Depois de um ano sem a Mariane falar comigo, ela me ligou e contou sobre seus problemas. Minha filha nasceu lésbica, e eu preparei bem o pai, mas ele não segurou as pontas e mandou ela embora. Então, ela foi comigo. Meu filho ia passar as férias, era tudo bem. Mas minha ex-mulher tinha muito ciúme dos filhos, na verdade, ela não tinha era maturidade. Bom, durou cinco anos e eu fui muito feliz com ela, depois, cada uma seguiu a sua vida…

Depois de dois anos sozinha, eu conheci uma moça e disse: “Essa eu quero!”, e, depois de algum tempo, veio mesmo. Estamos casadas há cinco anos. É um casamento muito feliz, pois nós duas nos encontramos e cuidamos uma da outra. Ela tem uma filha que diz que é dela, mas, na verdade, é minha, pois a guria é apaixonada por mim e eu por ela. Hoje, nossa vida é muito tranquila, vivemos bem, na medida do possível. Eu estou com 45 anos, e ela, com 31. Eu sou professora do Estado há oito anos aqui, em Caxias do Sul, sou extremamente respeitada e não me escondo de ninguém. A primeira coisa que eu falei para a coordenadora quando me chamou para assumir foi: “Eu sou lésbica, tem algum problema?” Ela, meio sem jeito, disse: “Claro que não. Tu dominas o que faz? Isso é que importa”. Desde então, estou aí alfabetizando e ajudando muito aluno no Ensino Médio.

Eu sou natural de Porto Alegre, mas sempre morei em Viamão. Quando eu saí de lá, foi muito difícil. Eu passei por louca, sem vergonha e todos aqueles adjetivos lindos que conhecemos, mas eu venci. E, com a minha primeira esposa, eu aprendi a trabalhar, a buscar os meus objetivos, a ir à luta. Eu fiz a bariátrica e, há dois anos, mudei minha vida completamente. Eu, hoje, amo o que eu vejo no espelho.

Meu ex-marido superou, já teve outra filha que, por curiosidade, tem a mesma idade da nossa separação. Casou novamente, e hoje temos uma relação tranquila quando precisamos conviver. A esposa dele é muito legal com os meus filhos, e isso vale muito. A relação da minha atual esposa com os meus filhos é excelente. Hoje eu me considero uma vencedora.

Andressa, a filha e Hanna Karolina

Andressa de Cássia Santos, 39 anosConsultora comercialMãe da Ketlyn

Me chamo Andressa, tenho 39 anos e uma filha de 16. Atualmente, sou casada com Hanna Karolina, 12 anos mais nova. Nos conhecemos por meio da minha comadre, que é prima de primeiro grau da minha companheira. Isso, aproximadamente 12 anos atrás.

Tive um relacionamento abusivo por cinco anos com o pai da minha filha. Vivi em uma mistura de sentimentos. Não sabia de fato se era dependência, carência ou qualquer outra coisa, pois amor eu sabia que não era. Quem ama alguém que te manipula, te vigia e te sufoca em todos os sentidos, 24 horas?

Quando engravidei, descobri que ele (pai da minha filha) tinha um relacionamento paralelo com outra menina. Naquele momento, ele deveria então assumir para ela que tinha me engravidado ou eu me libertar por completo. Quando minha filha completou um ano e oito meses, eu decidi que não queria mais viver toda aquela situação, e foi então que eu tomei a iniciativa de me separar de vez. Ele surtou e não aceitou a tal separação. No dia 13 de agosto de 2006, um domingo, ele quase nos matou por ciúmes e desconfiança de que eu estaria me relacionando com alguém, por estarmos já há praticamente um mês separados. Nesse dia, vigorou a lei Maria da Penha. Foi quando eu entrei com todos os recursos possíveis e impossíveis para nos proteger. Passaram alguns anos, e ele sempre atormentando e me incomodando constantemente por não aceitar, mesmo ele já estando com outra pessoa. 

Em 2014, eu me relacionei com um rapaz que era casado, o que fui descobrir um tempo depois. Isso durou quase dois anos e, quando acabou, eu entendi que não me faziam feliz os relacionamentos heterossexuais.

A minha atual esposa eu já conhecia desde muito nova, e sentia algo muito estranho por ela, mas, como ela sempre manteve relacionamentos longos, nunca consegui ter a oportunidade de saber se o que eu sentia por ela era sentimento mesmo ou só atração. Foi então que, em 2018, ela já estava separada do último relacionamento, e começamos a nos aproximar pelo fato de ela frequentar a casa da minha comadre, prima dela.

Tudo começou em 17 de julho de 2018. No início, minha filha teve um choque, pois eu, desde a minha separação do pai dela, nunca tinha tido alguém em casa e de fato assumido algo. Mas esse choque durou três dias. Hoje, elas são superamigas. Inclusive, minha filha diz que mil vezes eu com a Karol do que com qualquer outra pessoa. Para minha mãe e para minha família, foi supertranquila a questão do assumir. Inclusive, ficaram preocupados e pediram que eu falasse se alguém de dentro da família me tratasse mal em relação a isso. Mas, até hoje, tem sido tudo muito de boa. Para as pessoas que me conhecem, como eu já frequentava lugares alternativos, LGBT, foi muito normal. Inclusive, hoje eles dizem que já sabiam que eu gostava de meninas.

Núbia, Michelle, Andressa. Mulheres corajosas que, apesar dos medos de encarar o desconhecido, buscaram uma forma de ver a felicidade durar mais do que alguns minutos. Cada uma a seu jeito.

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