Comportamento, Maternidade, Vida

Viver e transcender a maior dor do mundo

Após perder o primogênito de apenas um ano e meio, ela fez do diário da doença um projeto social em prol do Instituto do Câncer Infantil e, mesmo com o coração despedaçado, abriu-se à vida e recomeçou. A dor não vai embora, mas, além de doer, ela também pode transformar. 

Dizem que, quando um filho nasce, o coração da mãe passa a bater fora do próprio peito. Se é assim, Taiane Bonorino terá sempre um pedaço do seu faltando. Quando Renato perdeu a luta contra o câncer em 2017, ela e o marido, Marcelo Magalhães, desabaram. Hoje, ao lado dos filhos Vicente e Gustavo, o casal enfrenta um dia após o outro. A saudade é para sempre. Contudo, celebrando a vida e ajudando outras crianças, eles encontram uma felicidade possível.

Quem é Taiane?

“Eu tenho 39 anos, sou natural de Itaqui, na fronteira com a Argentina. Morei lá até a idade de fazer Segundo Grau, aí eu fui para Santa Maria. E passei em Medicina em Pelotas”, conta a gaúcha. Após a faculdade e a residência clínica, Taiane mudou-se para Porto Alegre, onde se especializou em terapia intensiva. “Sou médica há 15 anos, e sou intensivista com muito orgulho”, comenta. 

“Meu marido é baiano de Salvador, e a gente se casou em 2015. Na nossa lua de mel, eu engravidei do Tato, meu primeiro filho. Ele nasceu no mesmo ano. Quando ele tinha um ano e dois meses, a gente diagnosticou um câncer infantil nele, no abdômen”, relata. Após quatro meses de quimioterapias, Tato precisou se submeter a uma cirurgia para retirar o que sobrara do tumor. Por complicações pós-operatórias, faleceu no mesmo dia. “Sem dúvida nenhuma, o pior momento da minha vida. A pior dor de todas, que eu vou carregar para sempre”, conta.

“Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”

A frase acima é de Hannah Arendt, teórica política de origem judaica que sobreviveu ao Holocausto. Assim como ela buscou sentido nos horrores da guerra, Taiane encontrou na escrita uma forma de elaborar as emoções diante da tragédia de ver a ordem natural das coisas ser subvertida. “No dia em que ele adoeceu, comecei a escrever como forma de elaborar o que eu estava sentindo. Ficou como um diário. Eu não tinha pretensão de publicar, só que as pessoas da minha família começaram a ler e a gostar”, explica. Quem acompanhava a página Luta Tato no Facebook também pôde ler alguns trechos da obra. “Depois que ele faleceu, eu fui muito estimulada a publicar. Até como forma de encontrar alguma razão para minha vida, porque, por algum tempo, ela ficou parada. Eu fiquei muito deprimida. Então, a gente fez uma primeira tiragem do Três Céus, que é o meu livro. Foram mil exemplares, e a gente vendeu em 15 dias. E toda a renda do livro é doada para o Instituto do Câncer Infantil (ICI)”, afirma. 

Encontro na TV

Depois que o livro Três Céus chegou às mãos de Fátima Bernardes e foi lido por ela, Taiane e Marcelo foram convidados a participar do programa Encontro, da Rede Globo. Quando a apresentadora questionou sobre exemplares disponíveis, apostando que a exposição na TV aumentaria as vendas, Taiane explicou que a primeira edição estava esgotada e que ela buscava uma editora para investir numa segunda tiragem. Fátima, então, apostou que o casal sairia do estúdio já com uma editora. “Dito e feito. Três editoras ficaram interessadas no livro, e eu acabei escolhendo uma que é em Porto Alegre, editora Verbo, que também doa todo o valor que recebe pelo livro para o ICI junto comigo; então 100% do valor da capa do livro é doado”, comemora. 

“Esse se tornou o projeto da minha vida. E hoje eu acredito que, se existe alguma possibilidade de eu reencontrar meu filho, é fazendo o bem, é fazendo essas doações, é me conectando com o bem”, avalia Taiane. O livro Três Céus pode ser adquirido em www.tresceus.com.br.

Por que não comigo?

“Quando essas coisas muito trágicas acontecem na vida da gente, a gente tende a se perguntar: ‘Por que comigo? Eu sou uma boa pessoa, eu nunca fiz mal a ninguém’. Hoje em dia, eu já penso: por que não comigo? Tragédias acontecem com as pessoas todos os dias, e por que eu seria o alecrim dourado para quem nada aconteceria? Por que essas coisas acontecem, a gente nunca vai saber, ou talvez, em algum outro plano, a gente descubra”, diz Taine. 

Pausa para lamber as feridas

Por trabalhar em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), cercada por pacientes contaminados por germes hospitalares, a médica se afastou do trabalho durante todo o tratamento de Tato. A previsão era voltar somente no mês de novembro. Entretanto, após perder o filho no final de maio, ela recebeu apoio para, após algum tempo, voltar à ativa. “Meu marido é profissional autônomo e precisava voltar a trabalhar, e me disse: ‘Tai, se tu for ficar em casa sozinha, eu não vou voltar’. E os meus colegas de trabalho foram muito acolhedores. Se a gente tivesse a possibilidade de ficar triste e parado para sempre, talvez isso fosse um ciclo vicioso. Tu estar parado gera mais tristeza. E mais tristeza gera tu não conseguir se movimentar. Então, para mim, foi muito importante o retorno ao trabalho. Foi muito suave, os meus colegas foram muito atenciosos em relação a isso. Fiquei lambendo as minhas feridas por dois meses, e depois fui à luta”, afirma.

A vida vence, e segue 

Cerca de dois meses após a morte de Tato, Taiane descobriu uma nova vida. “No dia em que ele fez uma tomografia pré-cirúrgica e nós vimos que o tumor tinha reduzido muito, rolou uma vez, e eu fiquei grávida. Só que não fiquei sabendo. E aí ele faleceu, e eu entrei num estado de dor muito absurda; parei de olhar para o meu corpo”, conta a médica. Ao tentar vestir uma roupa pouco antes do retorno ao trabalho, ela percebera a mudança. O atraso na menstruação havia sido creditado à bagunça hormonal daquele momento doloroso. Mas era real, ela estava grávida. “Então, oito meses e meio depois que eu perdi o Renato, nasceu o Vicente, que veio para nos juntar da sarjeta. Tomara que ele nunca saiba do peso enorme que ele teve na nossa vida, mas foi quando a gente voltou a sorrir, quando a gente voltou a querer viver”, admite.

Luto e gravidez, juntos

Naturalmente, a gravidez de Vicente foi difícil. “Depois que tu perde um filho, que é uma brutalidade muito grande, tu fica com aquele pensamento: filho morre. Antes isso parecia não poder acontecer. Pelas leis naturais da vida. Mas, no momento em que tu vê que um filho morre, parece que todo filho vai morrer, então eu estava com dificuldade de escolher um nome, de fazer um quarto, de tudo. Eu me lembro que nunca tive ideação suicida, mas eu pensava: “devo morrer em breve”. Porque ninguém sobrevive a uma coisa dessas. Mas não morri, e hoje quero ter vida longa, junto a esses dois filhos que estão aqui comigo, e lá, bem velhinha, se Deus quiser, ser agraciada com um reencontro com meu filho tão amado”, declara ela. 

Quando Vicente tinha oito meses, Taiane descobriu uma nova gestação. Dessa vez, nasceu Gustavo, hoje com dois anos. “Eles conhecem a história do mano, sabem que o mano mora no Céu, que ele teve um ‘dodói’ na barriga e não pôde ficar morando conosco, que mora lá com a vó bisa. Quando o céu está rosa no fim da tarde, eles dizem que o Tato está pintando o céu. A gente ensinou isso. Eu não sei exatamente o que eles entendem dessa história. Mas um dia vão entender, e acho que o livro, além de ajudar muitas pessoas, vai ajudar os irmãos a conhecerem a história do Renato” espera a mãe do trio. 

Mais segurança em Balneário Camboriú

Quando estava grávida de Gustavo, Taiane e Marcelo decidiram trocar Porto Alegre por Balneário Camboriú. O motivo? Segurança. “Eu pensava: quanto tempo eu vou ter que ficar de costas para a rua instalando essas duas crianças em cadeirinhas? Numa época em que tinha acontecido uma morte materna até na frente de uma escola. Então eu estava bem apavorada, várias pessoas do meu entorno sendo assaltadas, e eu tinha um colega de residência que me convidou para vir”, explica ela. Como Marcelo sentia falta de praia, eles foram conhecer a cidade no início de 2019 e se apaixonaram. A mudança não demorou. “Balneário Camboriú é a cidade em que eu mais gostei de morar até hoje”, confessa Taiane, que atualmente trabalha no hospital da Unimed e no Hospital Municipal Ruth Cardoso. Já Marcelo, dentista por formação, em Santa Catarina optou por uma nova carreira como empresário. 

Uma pandemia no meio do caminho 

Como os desafios não param, veio a pandemia. E, com ela, Taiane precisou conciliar a vida familiar com o trabalho de coordenar uma UTI para pacientes com Covid-19. “Eu fiquei muito ansiosa, e a gente ainda não sabia muito bem como trabalhar, não existiam protocolos. Depois, as coisas foram ficando mais modulares para nós. Mas as crianças tiveram que deixar a escolinha. Eu tinha uma babá em casa, que me ajudava. O meu marido teve a sua clínica odontológica fechada por um tempo, então também se dedicou muito aos filhos. Mas foi bem difícil, bem ansiogênico, eu fiquei com muito medo de morrer, porque no início era tudo muito cercado de mistérios e medos. Foi um momento muito, muito tenso mesmo”, avalia a médica, que também esteve doente no início da pandemia.

Reencontrar-se e reconhecer-se como mulher 

“A Taiane mulher ficou de lado por muitos anos na minha vida. Perder peso foi minha primeira decisão em busca de me reencontrar. Porque eu já não me reconhecia mais, cheguei aos 107kg. Eu vestia seis peças que me serviam, porque eu não cabia em nada. Sempre fui interessada por moda, vaidosa, e eu perdi tudo. Então, quando resolvi emagrecer, fui para a academia, aí troquei minha cor de cabelo, e voltei a fazer a unha toda semana, comecei a curtir moda de novo. Foi um processo muito gostoso, muito legal! Vou fazer 40 anos e esse é o momento em que mais gosto da minha figura. Eu me olho no espelho e me acho muito bonita, mesmo”, revela nossa entrevistada. Sobre a participação do marido nesse processo, Taiane afirma: “Eu só tive apoio dele de uma maneira superpositiva. Mas foi um processo solitário esse de tomar essas decisões e me recuperar”.

Para outras mães que vivem esse luto

Normalmente, não sabemos quando será o pior dia de nossas vidas. Segundo Taiane, uma mãe que perdeu um filho sabe que já passou pelo seu. “Não existe nenhuma experiência na vida que vai ser mais dolorosa que essa, então é uma certeza de que o teu pior dia já aconteceu”, declara ela. Quando questionada sobre o que diria a outra mãe na mesma situação, ela responde: “O maior clichê de todos mostra ser a maior verdade, o de que o tempo ajuda. Não existe cura, mas o tempo ajuda muito a conseguir guardar as memórias mais bonitas, a não se sentir com aquela dor aguda do luto. O tempo é nosso amigo e vai ajudando a recolocar a vida no lugar, embora a vida nunca mais vá ser a mesma, é inevitável”, conclui, realista. 

 

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