Vida

Um novo educar é preciso

Em livro que teve os desafios do ensino na pandemia como motivação, psicóloga expõe as bases de uma escola que promova o desenvolvimento socioemocional dos estudantes desde os primeiros anos.

No auge da pandemia de covid-19, a psicóloga Bianca Sordi Stock fez seguramente mais de 500 lives dentro do trabalho que desenvolve de assessoria a escolas na área de psicologia educacional, social e clínica. Havia um turbilhão de angústias entre pais, gestões, professores e alunos diante do ensino online que se impunha. Era preciso resguardar princípios para que o “novo normal” não significasse retrocessos na educação, tampouco a homogeneização do ensino aos moldes do que Paulo Freire chamou de ensino bancário, em que o professor deposita o conhecimento, e o aluno tem papel passivo de apenas recebê-lo. Bianca atua para que as escolas sejam ambientes facilitadores do desenvolvimento socioemocional dos estudantes e, no contexto da pandemia, observou que havia dificuldades entre as escolas de acessar conceitos que norteiam essa proposta, especialmente nas escolas do interior, apesar da grande vontade de educadores e gestores de conhecê-los.

– As pessoas estavam muito perdidas diante daquele contexto de aulas online, em que se retornou à escola da obediência. Foi um momento muito difícil – relembra.

Então Bianca organizou um curso online sobre o tema. Em cinco módulos ela destrichou conceitos e práticas para que o ambiente escolar, o familiar e o comunitário se conjuguem para acolher e desenvolver as crianças e os adolescentes.

– Criança e adolescente não são massinhas de modelar, que a gente pode moldar. Eles têm uma tendência inata à integração socioemocional, o que nos cabe é oferecer ambientes emocionalmente saudáveis tanto na família quanto na escola e na comunidade, para que sejam facilitadores da criatividade, do desenvolvimento autônomo e da construção de si – diz.

O curso, dividido em cinco módulos, foi a base para o livro A Escola como Ambiente Facilitador do Desenvolvimento Socioemocional, lançado pela psicóloga em dezembro de 2022, com prefácio de Paulo Fochi, do Observatório da Cultura Infantil (Obeci).  Na obra, Bianca aborda a construção de um ambiente saudável e seguro na escola, em que haja acolhimento às diferenças, comunicação não violenta e, claro, muita escuta de famílias, alunos e professores. A qualidade das relações nesses ambientes também faz parte da construção socioemocional, segundo a autora.

– Os vínculos precisam ser seguros na escola. Isso significa que não serão ambivalentes, autoritários ou permissivos demais. A criança ou o adolescente precisa se sentir contribuinte e aceito nos espaços – explica.

O trabalho de reconfigurar a educação para que se torne emocionalmente mais efetiva também passa por valorizar o brincar. Aí, Bianca ressalta o desafio diante das gerações conectadas à tecnologia, talvez um dos maiores no ensino da atualidade. É guerra perdida? Para a psicóloga, a resposta é não, desde que os adultos, educadores e as famílias estejam dispostos a promover uma vivência compartilhada. Isso significa brincar, não oferecer uma tela:

– A missão da escola não é distrair a criança. Ela tem um lugar de investigação de criatividade.

Outros pontos abordados no trabalho de Bianca são o estímulo ao autocuidado desde a infância e a valorização, nas escolas, da participação democrática, com assembleias e escuta às famílias. A pesquisadora reforça o foco nas ferramentas que o próprio cotidiano escolar oferece para que se tenha um desenvolvimento socioemocional de qualidade.

– Habilidade emocional não se aprende numa aula sobre empatia ou passando um filme sobre o tema e achando que, com isso, estão aprendendo habilidades socioemocionais. A vida já é rica o suficiente de situações que a gente pode, na vivência com as crianças e com os adolescentes, pensar num planejamento da sala de aula que seja favorecedor da construção dessas habilidades na relação com o outro. Não precisa forjar experiências, desde que os adultos possam pensar suas estratégias de mediação de conflitos, de promoção desse ambiente que não sejam no paradigma obediência, punição e. Gentileza, firmeza e limite não são equivalentes a brabeza, rigidez e grosseria – diz.

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A escola não pode ser um ambiente que adoece.

Por Bianca Sordi Stock

As demandas relacionadas à produção de sofrimento emocional na e pelas escolas tem crescido significativamente. Não apenas ao que se refere ao bullying, como também a organizações curriculares excessivamente tecnicistas, massacrantes em volume de informações, com estímulos extremamente competitivos e comparativos, que disparam os sintomas ligados à ansiedade e depressão. Soma-se o despreparo para acolherem as expressões contemporâneas dos modos de vida das novas gerações com as expectativas de padrões comportamentais homogeneizados, adaptados e obedientes. Estamos discutindo os mesmos cenários há década no campo da educação, agudizados pela experiência do isolamento social, com poucas mudanças efetivas: crianças, adolescentes e adultos estão adoecendo nas escolas.

A escola é responsável por ser o ambiente fundante, construtor e protetor do valor máximo da dignidade, expressa na convivência social entre os indivíduos. A escola é a escola. Não é fábrica, não é empresa, não é prisão, tampouco é casa. Pode ser morada: de encontros, de descobertas de si, do outro e do mundo, de aprendizagem significativa, de cuidado, de afetos e de memórias. A escola, para ser escola que emancipa e constrói cidadania, precisa ser a evidência de nossa utopia social, justa, democrática e amorosa, que promova experiências para que cada dia seja digno de ser vivido.

Precisa ser um local onde somos felizes. Portanto, um lugar onde a tristeza e demais emoções são escutadas e validadas, onde os erros são vistos como oportunidades de aprendizagem, onde cada pessoa se sente conectada com as demais e reconhecida pelas suas capacidades de contribuir com o todo. Somos felizes onde somos cuidados e encorajados a cuidar, onde construímos criativamente o mundo.

Urge repensamos a aprendizagem dos afetos no campo escolar, sobretudo no que diz respeito a mediação de conflitos e a promoção da participação criativa no cotidiano. As crianças e adolescentes (e os professores!) merecem uma escola encorajadora.

Entretanto, é importante salientar que o cotidiano da escola já por si só rico de oportunidades para que as habilidades socioemocionais sejam experienciadas. Como por exemplo, na acolhida dos estudantes a cada novo dia, na volta do recreio e as múltiplas situações que eclodem, na escuta dos estudantes em suas angustias, na organização de maneira criativa e atenta de uma proposta de trabalho em grupo, na mediação de um conflito habitual da sala de aula, na organização dos tempos e rotinas, ou mesmo nas conversas com pais e entre os próprios colaboradores da escola.

Com isto, quero dizer que de nada adianta ter “projeto dos sentimentos”, colocarem as crianças para assistirem filmes como o “Divertidamente” da Disney, ou os adolescentes terem aulas sobre empatia, se a o cotidiano da escola não é problematizado. É na delicadeza das relações diárias, e não em projetos paralelos e descontextualizados, que a transformação acontece e os ambientes se qualificam.

O desenvolvimento das habilidades socioemocionais são fruto de ambientes facilitadores do nosso amadurecimento emocional. Os princípios e características destes ambientes é o conteúdo do livro que recentemente publiquei, intitulado “A escola como ambiente facilitador do desenvolvimento socioemocional”. Abordo a temática a partir de cinco eixos: Ambiente, Vínculo, Brincar, Participar e Cuidado, em diálogo com autores da psicologia, da psicanálise, da pedagogia, da filosofia e da neurociência, dentre outras áreas afins.

Parto da ideia de D. Winnicott sobre ambientes e os processos de maturação dos indivíduos e coletivos. Como propões o autor, crianças e adolescentes não são moldáveis, como blocos de argila. Todos nós carregamos uma tendência inata à integração psique-soma e ao amadurecimento socioemocional e este potencial, em consonância com a ética dos afetos de B. Spinoza, se desenvolve a partir da qualidade das relações, em ambientes suficientemente saudáveis. Nós, adultos, com toda a nossa complexidade, compomos estes ambientes, assim como nos nutrimos deles. Portanto, convido para a pergunta: qual a qualidade socioemocional que temos proporcionado nas escolas para as novas gerações e quais os impactos desses cenários para a saúde mental?

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