Vida

A violência contra a mulher e as injustas culpas que carregamos

[Aviso de gatilho]

The Me You Can’t See”, série documental sobre saúde mental desenvolvida por Oprah Winfrey e Príncipe Harry, disponível no serviço de streaming da Apple, traz em um dos episódios da primeira temporada Lady Gaga e seu depoimento de como descobriu que estava grávida após ser estuprada por um produtor no início da carreira. “Eu tinha 19 anos, já trabalhava no ramo e um produtor me disse: ‘Tire a roupa’. Eu disse não. Saí, e eles [a equipe] me disseram que iriam queimar todas minhas músicas. E não pararam. Não consigo nem lembrar. Primeiro senti uma dor total, depois fiquei paralisada“, lembra, em lágrimas. 

A pessoa que me estuprou me deixou grávida em uma esquina na casa dos meus pais”, desabafa a cantora, que não especifica se decidiu realizar aborto, nem quem foi o abusador. Experiências como essa não são nada incomuns, seja na vida das celebridades ou das anônimas. E acontecem principalmente com menores. Um estudo do Ministério da Saúde que cruzou dados entre 2011 e 2016 identificou 4.262 meninas de 10 a 19 anos que tiveram uma gestação resultante de violência sexual denunciada e o consequente nascimento do bebê. Em média, 710 crianças e adolescentes tiveram o direito ao aborto legal negado, a cada ano. Sabe-se que, porém, muitos casos não chegam ao sistema de saúde.  

Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2018, foram registradas 66.041 ocorrências de estupro. Desse total, 53,6% das vítimas tinham no máximo 13 anos. Ampliando a análise até 17 anos, temos 71,8% de todos os registros de estupro nesta faixa etária. Também há subnotificação nessa base de dados.

Do ponto de vista da lei, o que é estupro

O crime de estupro está previsto no artigo 213 do Código Penal, de 1940, e prevê pena de 6 a 10 anos de reclusão para quem “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. 

Se a vítima tem entre 14 e 18 anos de idade, a pena é aumentada, chegando a até 12 anos de prisão. Conforme a advogada gaúcha Gabriela Souza, que faz atendimento exclusivo a mulheres, algumas situações agravam a pena, como quando a vítima for considerada incapaz. “Nesses casos, o prazo para a denúncia começa a contar apenas da maioridade da vítima”, afirma.

Gabriela defende que o estupro é um crime social, sem relação com atração sexual ou doença. “Estudos apontam que menos de 1% dos estupradores são homens doentes e, infelizmente, mais de 70% dos casos de estupro são cometidos por pessoas conhecidas da vítima. Mais de 98% dos casos contam com uma mulher como vítima. E mais da metade desses casos são cometidos contra meninas. Assim, o estuprador não comete um crime por qualquer fator clínico, mas sim, por um fator social de dominação e poder, onde ele pode representar este poder através de uma violação sexual.”

Advogada Gabriela Souza

Conforme a advogada, a legislação sobre violência sexual está avançando devagar nos últimos anos com a inclusão de novos tipos penais como a importunação sexual, divulgação de imagens sem autorização da vítima, estupros coletivos e corretivos.  “O problema brasileiro não é apenas a lei, que precisa ser interpretada por um sistema judiciário que muitas vezes revitimiza, a falta de informação sobre os direitos que possui e o modo como ela é tratada nos locais que deveriam acolher, como hospitais.  Muitas vezes o homem é favorecido, pela lógica social de colocar sempre em dúvida a palavra da mulher. Justamente por isso a lei determina que a palavra da vítima possua validade diferenciada neste tipo de crime”, afirma ela.

Mas nem sempre essa lógica é seguida. Muitos casos que acompanhamos na mídia colocam em xeque a denúncia feita pela mulher. Um exemplo emblemático recente é o julgamento da influencer Mariana Ferrer que terminou com tese inédita de ‘estupro culposo’, causando revolta em um grande número de mulheres.

Apesar de desastres do judiciário brasileiro, a mulher deve conhecer o direito como forma de proteção. “Uma coisa indigesta de falar, mas necessária, é que caso a vítima sofra alguma violação sexual não deve tomar banho. Este talvez seja o pior conselho psicológico para uma vítima, mas é o melhor conselho jurídico, uma vez que exames conseguem apurar vestígios do crime no corpo e nas roupas da mulher” detalhe Gabriela, que ainda completa: “Infelizmente não é fácil, mas eu acredito que este tipo de informação deve ser replicada para que mais mulheres consigam a justiça, em um judiciário que precisa urgentemente mudar a forma como trata os direitos humanos das vítimas de violência sexual.”

Violências contra a mulher

Luciana Corrêa, 35 anos, jornalista e pós-graduanda em Direitos das Mulheres, diz desconhecer mulheres que não tenham passado por situações difíceis ao longo da vida.  “Arrisco dizer que não existe mulher que não tenha vivido [alguma injustiça]. Talvez algumas não tenham se dado conta ainda. Muitas vivem mais, até por serem vítimas de outros tipos de opressão, como o de classe e de raça, mas todas de alguma forma vivem. Porque não podemos sair na rua à noite sozinhas com tranquilidade, porque no ônibus alguém pode passar a mão no nosso corpo, na rua alguém nos constrange com o que acham que é engraçado, porque no trabalho não somos ouvidas ou ganhamos menos que os homens por motivo nenhum. Isso só pra citar alguns exemplos. Infelizmente a situação das mulheres no Brasil (e no mundo) nos obriga a estar atentas”, reforça Luciana.  

Jornalista Luciana Corrêa

A jornalista comentou sobre o assunto recentemente em suas redes sociais, citando a PL 5435-2020, do senador Eduardo Girão do Podemos, do Ceará. “O estado não consegue garantir a nossa segurança, não consegue evitar que a gente seja estuprada e agora quer fazer com que uma mulher que engravidou vítima de estupro tenha que conviver com o seu estuprador, com um criminoso para o resto da vida?” Isso porque o projeto determina que o estuprador, quando identificado, seja obrigado a pagar uma pensão para a mulher se ela não tiver condições financeiras. Dessa forma, deve receber um auxílio do governo federal de um salário-mínimo até que a criança complete 18 anos. 

O PL vem rendendo grande polêmica e há quem afirme ameaçar os direitos adquiridos pelas mulheres, prejudicando a possibilidade de interrupção da gravidez inclusive nos casos já previstos em lei. Um dos grandes pontos em debate é o direito ao aborto legal que seria considerado crime. 

Para Luciana, para evitar que propostas como essa deixem de entrar em pauta, seria necessário ter um parlamento diverso, que representasse de fato as mulheres, “com foco no que diz a ciência e a medicina, as estatísticas, as características do país e não anseios religiosos (independentemente da religião)”. 

“Eu sou a favor da descriminalização do aborto. E isso não significa que eu abortaria. Eu sou a favor da mulher ter controle sobre o seu corpo. Os brasileiros precisam aprender a diferenciar o que querem para si, os seus valores, do que deve ser imposto como lei”, comenta a jornalista, que ainda conclui:  “Eu acredito que muitos dos nossos problemas são consequências de como a educação não é tratada como prioridade aqui.”

Outro ponto de vista

Lenise Garcia, 65 anos, presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto, vê a liberação do aborto em diversos países por outra perspectiva. “A meu ver, faz mal à sociedade porque desconsidera o primeiro dos direitos de todo ser humano, que é o direito à vida. Se eu não o defendo, aos poucos todos os demais direitos humanos também podem ser relativizados em benefício de quem tem mais poder, mais força pra impor seu modo”, defende. “No caso do aborto, o maior atingido, o nascituro, não tem direito a se defender. Penso que se desestrutura a sociedade na defesa dos próprios direitos da mulher. Ao contrário do que se coloca, a mulher muitas vezes não é quem decide. Ela é forçada, induzida e isso é algo que marca pra sempre a vida de uma mãe que matou seu filho.”

Lenise Garcia, presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto

Quando o assunto é a interrupção da gestação em circunstâncias extremas, Lenise diz concordar com nosso atual código de direito penal. “Eu considero que ele não permite o aborto em circunstância nenhuma, porque está escrito que é crime contra a vida e contra a pessoa. Porém, em determinadas situações extremas, como estupro, ele não é punido. No meu entender é diferente ser permitido e não ser punido. Isso não significa que o aborto seja a melhor opção para a mulher que tenha sofrido um estupro”.

Ela conta que, em função do movimento que lidera, acompanha o trabalho de algumas casas de acolhimento a mulheres que optam por seguir com a gravidez mesmo em casos de abuso. “O que elas relatam é que resolvem levar adiante a gravidez porque isso tem efeito curativo. Esse filho é amado como todos os outro que eventualmente ela tenha, e tem efeito de curar a ferida. A mulher pensa: aquilo pelo que passei foi tão duro, mas a criança que tive eu amo. Também há casos em que a mulher opta por dar o filho para adoção, e é uma decisão que deve ser respeitada, e o caminho pra isso facilitado. Se a mulher resolve levar adiante essa gravidez, o filho tem todo um agradecimento a essa mãe que resolveu dar-lhe a vida, e é uma vida que pode ser feliz como de qualquer outra pessoa”.

Pró-vida

Lenise acredita que o movimento pró-vida esteja crescendo no mundo inteiro. Segundo ela, por basicamente dois fatores. “O primeiro seria um fator científico de conhecer a verdade que vem principalmente a partir do ultrassom. As pessoas que defendem o aborto sempre procuram descaracterizar a criança em gestação, apresentá-la como se fosse não mais que um conjunto de células. O ultrassom veio pra mostrar que de uma forma muito precoce, estamos indubitavelmente diante de um ser humano. Adicionalmente, penso que um grande estímulo são as tentativas de se aprovar o aborto em diferentes países, porque a imensa maioria da população sempre foi pró-vida e não sentia necessidade de expressar seu pensamento simplesmente porque a lei, a constituição, garantem direito à vida. E não se via esse direito sendo ameaçado. A partir do momento em que há tentativa de legalizar aborto, as pessoas começaram a sentir a necessidade de expressar seu pensamento, de fazer uso da sua cidadania.”

Apesar das opiniões diversas, um ponto extrapola o campo das hipóteses. Seja qual for a circunstância, há sempre quem afirme que o erro é da mulher. Que ela provocou o abuso pela roupa que usa, pelo comportamento, pela hora que sai na rua. Se opta pelo aborto em gravidez indesejada, a culpa também é toda sua. Independente da idade e mesmo em caso de estupro. Quando, afinal, essa “culpa” vai deixar de ser nossa?

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