Quando se olha para uma jovem com posicionamento firme, reforçado na carreira de liderança em um ramo majoritariamente masculino, e conhece um pouco de sua trajetória inundada por dificuldades, fica fácil certificar que alguém com 27 anos pode, sim, traçar um novo cenário para o mercado mecânico automotivo, amplamente combinado com o feminino.
Com um percurso pontuado por duas grandes perdas, a empresária Gabriela Koslowski Loureiro nos permite intitular sua vida como “uma longa história”. “Aprendi a lutar já no ventre, quando fruto de uma gravidez na adolescência, por pouco não virei um aborto. Meu avô contava que ao assistirem uma ecografia em que “abanei” com a mão direita já totalmente formada, convenci ele e minha mãe de que eu viria, sim, ao mundo”, conta.
Nascida na capital gaúcha quando sua mãe tinha 15 anos, foi criada sem o pai biológico, que desde o início entrou para as estatísticas de abandono paterno. Gabriela ganhou do seu avô materno, Rudi Koslowski, a figura que que lhe havia escapado e vibra ao comentar que o avô e a mãe, Débora Koslowski, são os responsáveis por absolutamente tudo que ela é hoje.
Para entender melhor a história da Gabriela, é preciso saber que sua mãe trabalhava na área administrativa da oficina mecânica que o avô tinha em casa. Esse era o ambiente em que ela circulava e vivenciava as melhores experiências afetivas quando não estava na escola, o verdadeiro playground com os brinquedos mais reais possíveis. Segundo ela, a mecânica era muito parecida com o imaginário da oficina de fundo de quintal. Não se pensava em estética, em decoração e, muito menos, em atendimento ao público feminino, universo que a empresária já observou com carinho a atenção durante a rotina familiar e tornou-se referência para os futuros passos.
“Quando tinha oito anos, meu avô vendeu a casa onde morávamos para construir um pavilhão independente para a mecânica. Fui morar com minha mãe, que trabalhava na oficina durante o dia e estudava à noite. Estava no colégio somente à tarde e cuidava da casa, fazia o almoço para nós duas e organizava tudo para que ela pudesse trabalhar e estudar com tranquilidade”, acrescenta.
Em uma quarta-feira de março de 2006, quando tinha 11 anos, Gabriela insistiu para ir ao cinema e a resposta negativa da mãe foi justificada pela faculdade. Nesta noite, jantar na casa dos avós pareceu uma ótima alternativa, já que moravam no mesmo condomínio, mas a notícia sobre a morte da mãe, assassinada em uma tentativa de assalto na saída da faculdade, chegou horas depois. “Ela reagiu e tentou fugir. Se tivesse sobrevivido, seu destino seria ficar tetraplégica aos 27 anos. Minha mãe me criou casca grossa e parece mesmo que estava me preparando para encarar o mundo, praticamente, sozinha. Senti que virei adulta aos 11 anos”.
Koslowski descreve Débora como mãe, amiga, irmã, filha, trabalhadora e uma aluna exemplar na faculdade de administração. Foi, também, a partir deste momento que ela iniciou uma busca incessante por acolhimento, amparo e autoconhecimento. Com uma adolescência difícil e se sentindo, por vezes, revoltada, lembra com graça da sua “sucessão de escolhas desconexas e erradas”, para fazer o que estava ao alcance com o que o mundo lhe proporcionava.
A vivência de luto na perda precoce da mãe ainda se manteve com a morte do avô. Foram meses de mãos dadas acompanhando a luta contra o câncer e assistindo aos poucos a partida do que, segundo ela, ainda tinha de mais importante no mundo. O recomeço gradual iniciou quando ela iniciou os estudos na faculdade e transformou as ausências dos principais vínculos afetivos em crescimento pessoal, emocional e confiança em si mesma.
“Consegui ter a minha turma de amigos e, pela primeira vez, tive escolha, chance de errar, colo, suporte e carinho especial do namorado e da sogra. Eles me deram a chance de olhar para minha vida e para o mundo com mais gentileza e carinho pela pessoa que sou. O relacionamento acabou, seguimos uma linda amizade, e foi a partir daí que iniciei uma jornada focada na busca de uma carreira profissional”, explica.
O destino ainda incerto e a faculdade de direito vista como seu maior pesadelo, fizeram com que trocasse o curso para estudar Gestão Comercial, onde aprimorou as técnicas herdadas na família e aceitou os convites para cobrir as férias da secretária na mecânica. A partir das novas experiências, tentou convencer a família de que a empresa tinha potencial para crescer e que ela seria a pessoa certa para colocar a mão na massa e concretizar a empreitada. Na época, a empresa passava por uma crise financeira e o plano era reformular todo o negócio com um investimento inicial concentrado em mudança de endereço e nova identidade visual, com marca forte e posicionada.
Ao lado de algumas parceiras, Gabriela idealizou o “Mais Mulheres na Mecânica”, um workshop básico, ministrado e orquestrado por mulheres. Amplamente aceito, o projeto surpreendeu pela procura e interesse em conquistar autonomia ou até posições de liderança no tradicional segmento automotivo.
A Mecânica Gabriela K
Em março de 2021, Gabriela iniciou um novo processo de aperfeiçoamento na mecânica familiar. A imersão envolveu manutenção, inserções de figuras femininas, administração e marketing, até o momento de sentir-se pronta para mirar o novo desafio e lançar o próprio negócio. A Mecânica Gabriela K, segundo ela, é considerada a primeira oficina que leva o nome de uma mulher no Brasil e que, em menos de seis meses, abriu a primeira filial e, em menos de um ano, está com sua terceira unidade.
A maturidade prematura foi fundamental para o sucesso dos negócios e para driblar as zonas de conflito no ambiente profissional. Esse combustível foi determinante para dar sequência à dedicação do avô em um segmento culturalmente masculino e conservador. Gabriela precisou incorporar uma postura de enfrentamento para conquistar espaço no mercado notoriamente preconceituoso e machista. “Todos os dias ainda preciso justificar minha escolha, seja profissional, seja como me visto ou falo. Constantemente sofro ataques de todos os lados imagináveis por ser exatamente eu mesma e quebrar paradigmas”, destaca.
Outra vitória abraçada de afeto foi a oportunidade de aproximar-se do tio Giovane Loureiro e, aos 26 anos de idade, ser adotada. “Ele me deu o maior presente que eu poderia receber, uma família. Tenho um irmão, Kaike, de 15 anos e, como se já não fosse bom o suficiente, o tio é casado com a irmã da minha mãe, Andréia. Somos, sem dúvida, uma família pitoresca, mas com amor de sobra, companheirismo e cumplicidade”.
Democratizar o ambiente das mecânicas
É inegável que a paixão pelo automóvel está no sangue e foi a herança que Gabriela agarrou para seguir em frente. Captando os valiosos ensinamentos deixados pela mãe e o avô, ela acredita no potencial de um projeto iniciado com workshops gratuitos de mecânica básica para mulheres para ressaltar que todas têm seu lugar na mecânica automotiva.
A ousadia na construção de empoderamento e inclusão resultou no sucesso das edições dos encontros. Com a proposta de transmitir informações técnicas, desmistificar os veículos e gerar mais segurança e independência para elas na hora da manutenção dos possantes, o curso também canaliza para o bem comum e solicita a colaboração com roupas que serão repassadas a uma instituição responsável por ajudar mulheres vítimas de violência doméstica. “As motoristas estão interessadas em criar a cultura da manutenção automotiva na vida delas e quebrar padrões ultrapassados para fortalecer o mercado da mulher mecânica”.
Para o futuro a curto prazo, Koslowski pretende estabilizar seu lugar de fala. O desafio é mudar a predominância masculina e transformar a mecânica em um lugar para mulheres, seja como colaboradora, cargo de liderança ou cliente.
“Existe uma grande diferença entre discursar e colocar as ideias em prática. A mecânica é minha, carrega meu nome, e sou desrespeitada todos os dias, inclusive por funcionários. Quero transformar o dia a dia para que mais mulheres sejam respeitadas. E ainda, nos tornarmos a maior e mais importante rede de mecânicas do Brasil”, afirma.
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