A cena talvez seja comum para algumas: um homem escolhe mulheres na metafórica prateleira de um supermercado.
Os critérios são ser branca, loura, magra e jovem. Quanto mais longe desse ideal, pior o lugar da mulher na prateleira. Logo, quem ocupa a pior posição são as mulheres negras – principalmente, já que a prateleira é racista – mas também mulheres gordas, mulheres velhas, mulheres indígenas, mulheres com deficiência.
Trata-se de uma estratégia de reinstalar ou reassegurar a manutenção das relações de poder: quanto mais distante dos ideais masculinos, maior o impacto sobre a autoestima feminina e maiores as chances de se sentir encalhada na prateleira.
O mito do amor romântico prevalece muito?
Sim, o mito do amor romântico foi historicamente construído e tem efeitos muito diferentes para homens e mulheres. Ele é mantido por tecnologias de gênero, produtos culturais ocidentais que são direcionados sobretudo às mulheres, e o que elas aprendem através desses produtos é que a chancela de sucesso da “mulheridade”, elas como mulheres, é ser escolhida por um homem, ser escolhida e manter-se escolhida.
Por isso que eu criei a metáfora da prateleira do amor. Isso tem a ver com uma certa forma de amar que é aprendida e que vulnerabiliza as mulheres.
Pode detalhar como funciona?
A “Prateleira do Amor” é como uma prateleira de supermercado. Ela é mediada por um ideal estético. Esse ideal também se transforma, mas hoje é marcado por esses valores. Quanto mais distante desse ideal, pior o lugar da mulher na prateleira e mais vulnerável ela fica, mas também ela sofre objetificação sexual e preterimento afetivo, ou seja, aumenta a assimetria que a prateleira constrói entre homens e mulheres.
A prateleira já constrói essa assimetria, onde os homens são eleitos como avaliadores físico e moral das mulheres, mas quanto mais a mulher está numa situação de vulnerabilidade pelo péssimo lugar que ocupa, maior essa assimetria. Quando ela é escolhida, sente isso como um grande prêmio, mesmo que o sujeito que a escolha seja um “perebado” (o que se acha um Brad Pitt). Então, é muito mais difícil sair de uma relação abusiva para uma mulher que está ainda vulnerabilizada no dispositivo amoroso e ocupando um lugar ruim na prateleira.
A gente aprende que nosso corpo e beleza são os nossos principais capitais. Não interessa o que você seja. Vão dizer que você é desleixada, que falta autoestima
A prateleira é pior só para algumas mulheres?
Na verdade, a lógica da prateleira não é simplesmente o ser escolhido, é a importância que o ser escolhido tem para as mulheres como chancela do seu sucesso como mulher. Quanto pior o lugar da mulher na prateleira, mais preterimento afetivo ela vai sofrer. Ou seja, mais ela vai sentir ser escolhida como a grande sorte, ter um salvador. A prateleira, isso é muito importante dizer, mesmo para as mulheres que estão bem localizadas na prateleira, ou seja, brancas, louras, magras e jovens, elas estão vulnerabilizadas.
A prateleira é ruim para todas as mulheres, apesar de ser pior para algumas, que são elas que estão num lugar mais para trás da prateleira, mais vulnerabilizadas, generabilizadas. O próprio envelhecimento vai fazendo a gente migrar para trás da prateleira. O letramento de gênero vai imunizando as mulheres a essa lógica implantada que é assimétrica e que tem a ver com a incitação dessas emoções. A gente aprende a sentir de uma certa forma a partir da cultura. Ou seja, o letramento de gênero é uma espécie de antídoto. Você não fica totalmente livre, mas fica, digamos assim, o que provocava uma grande dor, só faz uma coceguinha.
Os homens tendem a terceirizar a sua responsabilidade afetiva e comportamental. Já nós aprendemos a nos responsabilizar pelos nossos sentimentos e comportamentos e pelos do parceiro.
Como funciona para os homens?
Os homens escolhem até certo ponto, porque a lógica da prateleira é interacional. O que chancela a identidade dos homens é a virilidade sexual e laborativa. Sobretudo a laborativa, ou seja, é a chancela de sucesso, dinheiro e status. Quanto mais dinheiro e status, mais acesso à prateleira do amor eles têm, sobretudo a mulher, “mulheres bem localizadas”, porque ficar com uma mulher bem localizada é chancela de sucesso para masculinidade perante os pares, perante outros homens, porque quem avalia as mulheres na prateleira do amor são os homens, mas quem avalia os homens são os próprios homens na casa dos homens.
Então, nem todos os homens têm o mesmo acesso à prateleira e a mulheres bem localizadas na prateleira. No entanto, o mesmo homem, por mais limite que ele tenha, seja físico, sejam problemas emocionais, seja violência, enfim, qualquer problema, ele acaba encontrando uma mulher disponível, disposta a cuidar, amar. E nem por ele, é pelo dispositivo amoroso. Há um exemplo que posso dar. Orientei um pós-doutorado aqui em Brasília, da Iara Flor, e uma das coisas que apareceu é uma mulher que foi morar na rua porque se apaixonou por um morador de rua. Obviamente, a gente não veria isso, se a história fosse ao contrário. Da mesma maneira, a gente tem mulheres quando tem câncer (70% das mulheres com câncer são abandonadas pelos parceiros, segundo a Sociedade Brasileira de Mastologia), o homem diz, “ah, não estou preparado para o seu câncer” e vai embora, mas a gente vê mulheres que foram abandonadas, trocadas por uma outra mulher, o cara tendo câncer e voltando para ela cuidar. Então é sobre isso, o investimento não é o mesmo, e os homens lucram com o dispositivo amoroso e materno das mulheres.
Quanto mais próxima do “ideal”, maior a chance de ser escolhida. Quanto mais no fundo, é desumanizada, como um corpo para ser “comido”, e não uma pessoa digna de receber afeto
E os perebados?
Os “perebados” nem sempre estão abertos a se “desperebar”. Prestem atenção nas táticas masculinas de pedagogizar mulheres e tentar adestrá-las: “volte a seu devido lugar!”
Há várias táticas possíveis, mas uma das mais utilizadas são aquelas relacionadas à lógica da prateleira do amor, sobretudo as relacionadas ao ideal estético e ao comportamento sexual (moral). Sobre este primeiro, temos: 1) homens tentam desmerecer as palavras de uma mulher usando a estratégia do julgamento estético. Isso implica em tentar acionar um gatilho identitário no qual aprendemos que nosso corpo é nosso grande capital e o ideal estético como nossa bússola desejável; 2) Trata-se de uma tentativa de reafirmar a estrutura assimétrica da lógica da prateleira, na qual nós somos as avaliadas e eles não são avaliados, mas meros avaliadores; 3) resumidamente, trata-se de uma estratégia de reinstalar ou reassegurar a manutenção das relações de poder.
Ocorre com frequência em nossas vidas, não só na esfera privada, mas sobretudo na pública. Vejam o modo como mulheres na política são atacadas por este viés e não em função da discussão de seus trabalhos.
Como reagir à prateleira do amor?
Não sou contra o amor, mas isso não é um pré-requisito para se dar amor, ter prazer, ter amigas, fazer as coisas que gosto.
O que provoca uma paixão positiva? É preciso descolonizar os afetos não para compensar o que falta, e é possível fazer isso de muitas formas, formando grupos com mulheres, lendo livros feministas, promovendo a politização do sofrimento. Não é o dedo que tá podre, são as masculinidades que estão adoecedoras. Acredite na sua saúde a partir disso, porque o letramento de gênero é profundamente libertador. A preocupação tem que ser você e não fique só, se nutra do amor de outras mulheres. Somos muitas e podemos andar juntas.
Valeska Zanello é pesquisadora na área de Saúde Mental e Gênero, professora no Departamento de Psicologia Clínica (Universidade de Brasília). Também é filósofa e pós-doutora.
Entrevista realizada por @tbandeira
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