“Não precisamos que nos aceitem, exigimos que nos respeitem”
A Fala Feminina deste mês retrata uma mulher transexual de personalidade marcante. Ela é irreverente, possui carisma arrebatador. Provavelmente você já ouviu falar nela e, se ainda não ouviu, vai ouvir. Ela é natural de Bagé, é casada, já foi candidata a ocupar um cargo na câmara municipal de Porto Alegre. Hoje é ativista pelo movimento LGBT. Conheça mais sobre Glória Crystal, a musa transexual de Porto Alegre. Glória nasceu Miguel em uma família de cinco irmãos, na cidade de Bagé, tradicional reduto gauchesco. É de Bagé o personagem de Luis Fernando Verissimo, O analista de Bagé, que praticava a terapia do joelhaço. Mas nessa cidade ela ficou pouco e ainda pequena se mudou para Porto Alegre.
O nascimento de Glória
A mãe, já falecida, era a única que compreendia o filho Miguel, que aos poucos foi assumindo sua homossexualidade para a família. O pai, pelo contrário, nunca aceitou a orientação sexual do filho mais velho e até hoje, mantém uma relação distante. “Ele me batia para que eu virasse homem.” Aos 17 anos, o então Miguel saiu de casa e precisou suspender os estudos. Dois anos depois, nascia Glória Crystal.
Glória começou a ganhar a vida fazendo shows em casas noturnas da Capital. No palco Glória era diva, aclamada pelo público. Na rua, era discriminada e sofria inúmeras formas de preconceito e agressões. Um desses momentos marcaram sua vida: com aproximadamente 20 anos, ao pegar um ônibus, Glória foi agredida ao tentar descer em sua parada. Mas engana-se quem pensa que a agressão foi o que de fato a marcou nessa história. Após chegar à casa em que iria fazer sua apresentação, a mesma turma que a agrediu, a aclamou:
“Maravilhosa, diva, deusa, absoluta… Aquilo me deu uma tristeza tão grande porque dentro do gueto, eu era uma diva, fora do gueto, eu era discriminada.”
De uma boate a outra, Glória e seus companheiros de noite passavam por situações adversas e por vezes, traumáticas. Ela relata que, há cerca de 30 anos, quando o Brasil recém saia de um período obscuro de sua política, marcado por um regime militar, ela tinha muito medo da polícia. Naquela época, a polícia era orientada a prender a população LGBT que estivessem na rua à noite. Por diversas vezes, ao fazer o trajeto entre as casas noturnas, eles eram apreendidos e levados à Delegacia dos Costumes, localizada na Estrada do Forte, onde eram obrigados a limpar o local, servir café, por vezes até fazer sexo com desconhecidos, além de apanharem dos policiais e somente no outro dia, serem soltos.
Mesmo com tantas situações de preconceito e discriminação que Glória sofreu até se tornar a famosa Glória Crystal de hoje, ela não se considera uma vítima e nem minoria, pelo contrário, enfatiza que a população LGBT é maior do que pensamos: “Bixa é igual a televisão, toda família tem uma, só muda a marca, o ano e o modelo”.
Casamento
Aos 32 anos, a vida de Glória Crystal iria tomar um rumo que nem mesmo ela esperava. Em mais uma noite de trabalho, agora como gerente de uma danceteria, Glória conheceu Thiago Pereira da Silva, na época, garoto de programa, com apenas 16 anos. Thiago queria entrar no local, mas devido à idade, Glória não poderia permitir. Os dois conversaram um pouco e mais tarde ela encontrou com Thiago em um bar. Eles começaram a conversar e acabaram ficando juntos naquela noite.
Foram anos juntos até que a decisão pelo casamento surgiu, partindo de Thiago, em 2015. Ele percebeu que em muitos casais de amigos gays, quando acontecia alguma fatalidade entre o casal, o parceiro que ficava acabava sofrendo em dobro devido às brigas com a família do outro para a disputa de bens. Glória explica que a decisão foi exatamente por isso, mesmo que aos olhos de espectadores pareça estranho já pensar na perda do companheiro, quando na verdade, é uma realidade no país que mais mata travestis e transexuais do mundo.
A cerimônia era para ser discreta, mas na época, Glória já era uma figura pública reconhecida e estava à frente da secretaria da Livre Orientação Sexual de Porto Alegre, como secretária adjunta. A cerimônia aconteceu no Chalé da Praça XV e foi acompanhada por amigos, colegas e imprensa. Glória conta que há 20 anos juntos, a única coisa que abala a relação do casal é a vida agitada de Glória como ativista na luta pela causa LGBT.
Ativismo e Política
“Eu tenho direito à saúde, à educação, à segurança pública e a partir de que o meu direito for violado, eu tenho que gritar por isso”
A primeira manifestação de Glória Crystal em movimentos sociais aconteceu há 21 anos, na Primeira Parada Livre de Porto Alegre. Ela conta que naquela época os participantes do movimento iam para a manifestação de máscara para que não fossem reconhecidos, com medo da repressão. Ela passou a apresentar a Parada Livre e em cima do palco vem buscando a união entre os movimentos sociais.
O grande problema da nossa população LGBT é que nós somos muito desunidos e a gente precisa se movimentar para defender nossos interesses.
Com 48 anos de idade Glória voltou a estudar e hoje, aos 52 anos, é assistente social. Em 2015 foi nomeada como secretária adjunta da Livre Orientação Sexual de Porto Alegre, a primeira representante da comunidade LGBT a ocupar este cargo no país. Desde então, vem realizando um trabalho nas comunidades carentes da Capital em prol da luta e do reconhecimento de direitos a essa população. Um de seus principais trabalhos é realizado dentro de postos de saúde, onde procura orientar desde o recepcionista ao médico para eles receberem e tratarem seus pacientes pelo nome social, como uma forma de garantir dignidade a essa população.
A luta de Glória foi levada tão a sério que no ano passado, ela decidiu candidatar-se a vereadora de Porto Alegre. O objetivo era trazer a população LGBT para a política e desta forma, fortalecer o movimento que, segundo ela, necessita de unificação: “A minha angústia com a minha população é que se ela não se politizar, não iremos avançar”. A candidatura esperada de Glória não veio, mas ela segue na luta pela causa LGBT.
Num universo onde tantas Glórias estão querendo conquistar seu espaço na sociedade e assuimir sua identidade de gênero, Glória Crystal manda um recado:
Toda mulher trans pode ser uma Glória Crystal, mas é preciso se empoderar.