Artista visual múltipla, Zoravia Bettiol é focada em todas as manifestações da arte e da natureza. “Eu vejo que as duas coisas me ajudam muito”, confessa, ornada com joias de sua própria criação e entre gravuras de sua produção mais recente. Há flores, pássaros e borboletas em muitas delas, e também em boa parte de sua vasta obra, que inclui ainda desenho, pintura, objetos, tapeçaria, ornatos, instalações, performances – tudo o que possa ser considerado arte.
Se a técnica é variada, passando também pela colagem e pela fotografia como ponto de partida, a temática não tem limites. Começa nas origens europeias da artista, percebida no seu lado mais acadêmico, com a representação de mitos, fábulas, lendas, referências bíblicas, personagens de quadrinhos. Amplia-se com o fascínio pelas culturas negra, com sua predileção por orixás, e indígena, com artes têxteis inspiradas no meio ambiente, que elegeu como uma de suas bandeiras de vida.
Em todas elas, arte e natureza andam juntas, como nas madressilvas, que tanto admira. “Sempre gostei de morar em casa”, diz a artista. “Cada dia, quando amanheço, olho pro jardim e, se vejo flores, se vejo árvores, se vejo pássaros, isso já me prepara pra ser feliz.”
Influências europeias
O próprio nome com o qual assina suas obras tem a ver com as primeiras horas do dia. “É de origem eslava. Via vem do latim e significa caminho. Zora, amanhecer. Então, Caminho do Amanhecer.” O Bettiol é italiano, mas em sua formação há também influência sueca e austríaca.
Desses momentos enlevados do cotidiano, Zoravia recorre a temas como o jogo de sedução entre abelhas e flores da série Criaturas Voadoras: “As abelhas são atraídas pela flor. A natureza precisa da polinização das abelhas, que se atraem e são atraídas pelas flores”.
A mesma fonte de inspiração para esse estado de espírito é também a que contribui para mantê-lo: “No meu caso, é a natureza que ajuda. Eu sou agitada, a natureza é calma. Natureza é som, cores. Cada época do ano tem a sua beleza. É cambiante”.
O título do livro que, em 2007, resumiu sua trajetória de seis décadas como artista em 245 páginas tem a ver com essa predileção: A Mais Simples Complexidade. O volume, com a participação da jornalista e crítica de arte Paula Ramos, mostra suas fases lírica, lítica, ecológica, social, a de humor. “É a síntese do meu trabalho”, diz a artista, apontando reproduções específicas de obras, algumas integrantes de acervos de museus em todo o mundo. “Aqui tá o Cristo Redentor abanando pra ti com um turbante à la Carmen Miranda, a Estátua da Liberdade liberada com a queima dos sutiãs…”
A expressão facial de Zoravia é uma das muitas em que se deixou fotografar para gravuras da série na qual reflete sobre o tempo em que passamos a vida sentados – algumas das quais usadas para ilustrar essa entrevista. Nesses trabalhos, a artista aborda questões que, em 1935, quando nasceu, pareciam remotas. Uma delas é justamente a passagem do tempo.
“Vendo a vida passar. Passou…”
Aos 22 anos, quando fez uma viagem de navio com a irmã para a Europa, Zoravia impressionou-se com a vitalidade de um grupo de idosos norte-americanos. Todos dançavam e se divertiam o tempo todo, tanto em alto-mar quanto em terra firme.
A garota de então ficou refletindo: “Quando eu ficar velha, se no Brasil não tiver espaço pra mim, vou para um lugar em que eu possa ser uma pessoa divertida e movimentada”.
Hoje, reconhece: “Nem precisei mudar de país. As coisas evoluíram”.
E pondera sobre a idade que, no seu caso, não interfere no ritmo de produção: “Criatividade não se aposenta. Criatividade só deixa de existir se alguém oprime, se alguém diz assim: ‘Tu não podes te manifestar’”.
Vivendo a vida
Zoravia não aceita o conformismo de quem para no tempo. “Tem muita gente que se aposenta de uma profissão e se aposenta na vida. Daí, fica vendo televisão, dizendo: ‘Ninguém me ama, ninguém me quer, meus filhos não me telefonam’. Mas a pessoa não toma nenhuma iniciativa de telefonar pros filhos, de rever antigos amigos ou de fazer novos, né, não faz. Então, se aposenta da vida, né, já morreu”.
Habituada a estar com pessoas antes das mudanças impostas pelo novo coronavírus, a artista sempre circulou com pessoas mais jovens, por uma razão muito simples. Na minha idade, é assim: ‘Não, tá me doendo alguma coisa’. ‘Não saio mais à noite’. ‘Não, é perigoso’. ‘Não, não tenho vontade’. Eu não quero ouvir essas conversas. Telefono uma vez ou duas, e tchau. Porque viver é perigoso, dá trabalho. Mas sinto que eu perturbo a vida da pessoa, e eu não quero isso. Então, tu tens que ver quem combina contigo”.
Zoravia se inclui entre quem vê a maturidade como uma continuidade do que se foi na juventude. “Eu acho que a velhice, pra qualquer pessoa, é um resumo, é uma síntese do que ela foi”, alega. “Nesse final, aparecem as coisas boas e ruins, as qualidades e as fragilidades. Mas, se ela teve mais ênfase em coisas boas, isso vai aparecer. Se ela foi mais pessimista, também vai aparecer com mais cores, com mais intensidade.”
E conclui: “Eu tava lendo há pouco tempo que as pessoas não se preparam pra velhice. Eu já comecei a me preparar…”
Vasco, mestre e parceiro: “Muito fechado”
Zoravia Bettiol encaminhou-se para a gravura em 1956, depois de cursar o hoje Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi quando começou a frequentar o ateliê do escultor e gravador Vasco Prado. Ambos acabaram se casando e tiveram três filhos. “O Vasco era muito charmoso”, recorda. “Eu me apaixonei por ele e ele por mim. Aí, ele se separou, né? Depois, nós vivemos juntos 28 anos. Nos separamos em 1985.”
Vinte e um anos mais velho, o marido era também “muito fechado, muito tímido, muito antissocial”, conta Zoravia. “Acho que tinha um pouco de ciúme de mim. Então, ficava difícil. Uma pessoa mais otimista envelhecendo é uma coisa. Era também muito inseguro, mas nunca quis fazer terapia, e isso é ruim. Eu acho assim: se tu tens uma fragilidade e não consegues enfrentar, vê alguém que possa te ajudar. Às vezes, uma terapia de apoio te ajuda enormemente. Não precisa se tratar por dez anos.”
A própria Zoravia chegou a fazer terapia, por pouco tempo, por razões bem específicas: “Pelos problemas, pessoais e outros, numa época que eu era presidente da Associação Chico Lisboa e também se criou o movimento da cultura. Então, eu tinha muita gente nas mãos e queria ter uma liderança o mais democrática possível. Fui pra me auxiliar nisso. Tu tens que ter firmeza. Tens que ouvir sempre as pessoas. Mas também é importante que te ouçam. Como conviver? Tem a maneira mais democrática, é evitar o autoritarismo. Sempre existe autoridade, é bom. Mas não autoritarismo. Deus me livre”.
“O que é ruim é machismo, que muitas vezes é disfarçado”
Assim como não suporta o autoritarismo, Zoravia rechaça papéis como o de submissão da mulher. “Eu acho assim: casamento e ter filho é uma coisa ótima”, diz, sem hesitação. “O que é ruim é machismo, que muitas vezes é disfarçado.”
Zoravia e os irmãos foram orientados desde criança que há duas questões essenciais na vida: ter uma profissão e se sustentar. “Depois, vem se tu casa ou se tu não casa, se é rica ou não é rica, se tem filho ou não tem filho. Primeiro, é preciso esse âmago bem forte em ti, de que tu é independente. Depois, que é bom tu te associar, ter um casamento, ter filho ou ter projeção social, profissional. Mas esses dois alicerces são fundamentais.”
Essa visão acabou interferindo nos rumos do relacionamento com Vasco. “Infelizmente, peguei a parte de administração do ateliê. Eu detesto, mas ele era pior do que eu nisso. Então, eu tinha essa parte. Ele acompanhava mais as crianças a fazer lição. Eu não tinha tempo. Eu tinha que administrar a casa, administrar o trabalho de dois artistas.”
Antes, filho era coisa de mulher, relembra. “E filho é coisa de homem e de mulher, dos dois. Agora, também eles estão aprendendo a cozinhar. Os homens estão aprendendo a cuidar de um bebê, a mudar fralda. E, quando é um casal jovem, mais normal, como eu digo, hoje em dia, o homem divide, ele não ajuda a mulher. Ele divide, não é ajudar. Ajutório parece que ele tá fazendo um favor ajudando. Já tá acontecendo, por isso que eu digo vagalumezinhos, mas a tendência é aumentar isso.”
Filha do meio, sempre na liderança
Desde pequena, Zoravia era protagonista. “Tive uma família muito bem constituída, que deu muito afeto pra mim e pros meus irmãos, muito carinho, muito amor, e isso foi o lastro. Eu sou a filha do meio. Isso me deu muita força.”
A artista inspirou-se também numa tia que morava com a família, irmã da mãe, que era educadora sanitária, o equivalente hoje a assistente social, e independente financeiramente. “Eu tinha três pessoas que me davam afeto. Com 12 anos, eu conseguia fazer com que minha opinião fosse respeitada. E eu via que, na casa dos meus amiguinhos, era aquela coisa ‘criança não fala quando adulto fala, criança fica quieta’. Sempre aquela repressão em tudo. Eu via uma diferença enorme de tratamento.”
Sempre atenta ao social, a artista lamenta que nem todos tiveram uma oportunidade semelhante. “Isso é muito determinante, claro. E também vejo que me deu tendência ao otimismo. Eu acho que isso tu alimentas, ou tu subvertes.”
Da família, o amor pela preservação
O pai, professor do IPA, era para se chamar Siegfried Bettiol. Virou Sigefrido. Todos o conheciam por professor Bettiol. “Que coisa horrível que não corrigiram. Siegfried é bonito, Sigefrido é feio, né?” A mãe chamava-se Emma Chitolina Bettiol.
“Então, aos domingos, eles nos levavam eu e meus irmãos pra almoçar. Tinha um laguinho pequeníssimo numa pedreira. E meu pai sempre levava pra minha mãe um buquê de flores silvestres quando ela ficava em casa fazendo agnolini, que todo mundo adorava.”
Desde então, Zoravia associa a natureza com preservação, amor, carinho. “Mais por causa das flores, das pedras. Meu pai era um homem com muita cultura humanística. Lecionava português, latim, história e geografia. O (Augusto) Carneiro, um dos fundadores da Agapan, juntamente com (José) Lutzenberger e com o Alfredo Gui Ferreira, disse que meu pai ensinava geografia de uma maneira tão progressista, que já intuía alguns princípios mais tarde considerados básicos pro ambientalismo. E me deixou esse legado que, depois, acabou aparecendo na minha obra. Uma das temáticas é a ecologia.”
Inspirada na família de origem, Zoravia constituiu a sua, com Vasco, também com três filhos:
Fernando: “Ele fazia um pouco de artes visuais, mas parou. Faz também um tipo de granola. E, às vezes, também ajuda um amigo dele que é corretor de imóveis”.
Eleonora (Nora): “É atriz e escreve também. Tem um livro de contos e também escreve crônicas”.
Eduardo: “Se formou em história, mora em São Paulo, é casado com a Lígia. A Lígia é artista visual. E o Eduardo está estudando neurociência, quer trabalhar em pesquisa”.
Militante? “Sou uma cidadã consciente”
Zoravia não se limita no cotidiano ao convívio com familiares e com Cristian Comunello, que a assessora na vida real e digital, pois só sabe “ver e-mails”. Faz parte de muitos grupos – Comitê em Defesa da Democracia e do Estado de Direito, ProsperArte, Chico Lisboa, Agapan desde a década de 80, Festival de Cinema, outro só de São Paulo. Com isso, tem jornadas de trabalho que, antes da pandemia, se estendiam por até 14 horas. “Olha, é uma loucura, tenho que dizer não.”
Ainda assim, não se considera uma militante: “Nunca usei essa palavra e acho que nunca vou usar”. E que termos usaria? “Eu sou uma cidadã consciente, só isso”.
Na verdade, se assume como uma guerreira: “A gente luta. E isso faz parte da vida. Eu acho que há uma coisa fundamental para o ser humano em qualquer idade e, mais ainda, na velhice: continuar a ter planos pessoais e que incluam o outro, a parte voluntária, que eu acho importantíssima, que aí tu conheces outro Brasil, outras situações. Quem sabe mais tem obrigação de compartilhar com quem sabe menos. Outro aspecto de cidadania, não de ativismo”.
Inconformidade com injustiças
Com essa forma de encarar o mundo, o que mais incomoda Zoravia são as injustiças. “É essa desigualdade brutal, no país e no mundo. Essa desigualdade desnecessária. Tu vês pessoas que têm famílias mal constituídas, não têm emprego, não têm escolaridade. Diante de um crime, eu tenho pena tanto do agredido quanto do agressor. Os dois são vítimas, é lógico.”
É a partir dessa visão que Zoravia se posiciona politicamente, sem meios termos. Sobre o momento em que o país mais viveu com cidadania, diz: “Acho que com o Lula, né, que deu abertura”. Sobre o governo Jair Bolsonaro, não tem dúvida: “É fascismo declarado”.
E mantém a fé no papel da arte para mudar a realidade: “A arte tem um potencial enorme de transformação, um elemento importantíssimo na formação de uma pessoa. Na escola, então, é muito importante, porque abre os horizontes da pessoa, porque provoca a sensibilidade, dá coragem e desenvolve o senso crítico”.
Como a descreveu Moacyr Scliar, “Zoravia é uma artista de ideias e de causas; acredita na igualdade, na justiça, na dignidade”.
“Sem essa de pobrezinha. Detesto”
“É bom morar sozinha, é bom, depende a época da vida”, garante Zoravia, afirmando: “Não, não quero casar de novo. Tive muitos namorados e amizades coloridas. Em 1985, quando eu e Vasco nos separamos, eu tinha 50 anos. Aí, morei sete anos em São Paulo, depois fui pra São Francisco na Califórnia e morei oito anos.”
A artista retornou à cidade natal em 2000, em paz. “Gosto de Porto Alegre, embora Porto Alegre, hoje em dia, esteja péssima comparada a outras cidades.” A casa na qual passou a infância – “forte e bonita” – existe até hoje, na Rua Santa Cecília – na época, Rua Larga. Embora o pátio fosse grande, o pai gostava de levar os filhos até o Parque Farroupilha, a Redenção, que a artista registrou em algumas gravuras.
As casas nas quais morou, aliás, têm tudo a ver com a trajetória de Zoravia. A que dividiu com o marido, o artista Vasco Prado, no bairro Pedra Redonda, funcionava também como ateliê e galeria. Tinha cerca de mil metros quadrados e até 12 funcionários. A atual tem a metade do tamanho. Zoravia precisa se ocupar apenas da coordenação de serviços como faxina e alimentação, à base de congelados e saladas.
Tons coloridos
A artista nunca bebeu, nem fumou. Antes de o cotidiano ser transformado por um vírus, costumava sair com frequência, ir ao teatro, ao cinema, jantar fora. Gosta de filmes de arte, dos europeus, de documentários, principalmente os ligados ao meio ambiente.
A arte e a natureza são indissociáveis de Zoravia. “Não tenho depressão, não tenho solidão”, garante a artista, que vê a vida nos tons coloridos de suas vestes habituais e de sua arte. Há algum tempo, quando esteve hospitalizada, colou um cartaz com um pedido aos visitantes, perto da cama: “Fique poucos minutos. Vamos falar de coisas boas. Quando eu sair daqui, vamos fazer uma festa”. Por quê? “Pra não ficar nem sala de visita, nem essa de ‘pobrezinha’, detesto.”
Essa é Zoravia.