Mudanças exigem muito mais que desejo. É preciso romper com hábitos. É necessário romper com o conforto até mesmo aqueles que já nos aprisionam e nem notamos. Como diz um ditado “Um navio no porto é seguro, mas não é para isso que os navios foram feitos.” É preciso e necessário expor-se às marés calmas e as turbulentas. E não existe ser humano mais propenso a renovar-se do que uma mulher. Afinal, o corpo, a cabeça, o coração e o espirito de uma mulher estão em constante movimento. Navegar é preciso e é o que vivem Janine, Clarissa, Daniela e Luísa. Quatro mulheres que ousaram afastar-se do porto para navegar, antes de tudo, em busca de si mesmas. Estão ainda em alto mar. Porque ousar, assim como mudar, são verbos, transitivos, diretos e femininos.
Fátima Torri, editora da Fala Feminina
(será que colocamos alguma imagem aqui? mais ilustrativa)
Aos 61 anos, uma nova vida no Velho Mundo
Com uma aposentadoria modesta e sem os luxos a que estava acostumada, Janine trocou Porto Alegre pela cidade do Porto, em Portugal
Os terninhos, os saltos e as roupas de grife deram espaço a tênis e peças confortáveis. Janine mudou. Mudou muito. E não se trata de uma revolução de guarda-roupas. Foi – e é – uma transformação íntima e profunda, que fez a gerente de marketing Janine Castellan de Oliveira, 61 anos, arregaçar as mangas para uma nova vida, completamente diferente da atribulada rotina como executiva de um shopping de Porto Alegre.
Há cerca de seis anos, ela foi impactada pela morte do chefe, cuja amizade se estendeu para além do trabalho. Faltava um ano para ela se aposentar. A perda do amigo, um homem de 56 anos, triatleta e saudável, para um câncer fulminante foi um divisor de águas.
– Isso mexeu muito comigo. Éramos muito próximos. Ele morreu em setembro. Em dezembro, saí de férias, viajei com a viúva dele, que também é uma amiga. Voltei muito deprimida da viagem, questionando a vida… Era hora de fechar um ciclo – conta.
Decisão tomada, hora de planejar a nova etapa. Isso significou um longo processo de desapego, material e psicológico, além de muito planejamento, porque, mesmo na reviravolta, Janine não conseguiu se desligar totalmente de seu lado mais pragmático. Vendeu o carro, deixou o excelente apartamento em frente ao Guaíba e reorganizou sua relação como consumidora. Com uma aposentadoria modesta e sem os luxos a que estava acostumada, mudou de porto. Trocou Porto Alegre pela cidade do Porto, em Portugal. O dia a dia de reuniões e disponibilidade quase integral para ao trabalho, deu lugar a um cotidiano mais simples e reflexivo.
– Ainda me cobro muito, sou exigente comigo mesma, mas é um processo evolutivo. Fiz terapia com uma portuguesa, e ela dizia: “Tu não tens mais que entregar um relatório, uma planilha, fazer um projeto. Tu podes viver uma vida mais leve” – conta.
Sair de um “modo” workaholic para um mais leve foi a parte mais difícil para Janine, somada à distância de família e amigos, que, de certa forma, foi amenizada com as redes sociais. Nesse novo ciclo, ela fez do tênis seu sapato oficial, dos trajetos a pé ou de metrô sua movimentação e retomou prazeres adormecidos, como o de preparar a própria comida – antes, as refeições eram feitas no shopping mesmo – e escrever. Formada em Jornalismo, Janine tinha deixado de lado o gosto pela escrita.
A nova configuração de vida, já rendeu mais de 80 crônicas publicadas em seu perfil no Instagram, um romance, cuja publicação ela está batalhando entre contatos e editores, e um livro ainda em produção sobre impressões de uma mulher de 60 anos nas interações em namoros online. Tudo, claro, com leveza. Janine não é mais a mesma.
Tempo de semear… Tempo de colher
No auge da pandemia, Clarissa viu a chance de dar prosseguimento a um projeto de vida do pai e tornou-se agricultora no interior de Encruzilhada do Sul
A rotina em Porto Alegre sempre foi corrida. Secretária de uma escola de idiomas e mãe de um pré-adolescente, Clarissa Beckel da Fonseca, 43 anos, fazia os malabarismos de mulheres e mães que vivem numa cidade grande. Ajustava horários, refeições em meio à correria, administrava intervalos do trabalho para dar conta das demandas do filho e também ter lazer ao lado do marido, Marcelo. Mas havia uma semente a ser germinada e, ironicamente, as imposições da pandemia, que aprisionaram muita gente em casa, foram liberdade para Clarissa.
Neta de um produtor rural de Carazinho, ela deu prosseguimento a um projeto que se iniciou com o avô anos atrás. Ele havia comprado uma propriedade em Encruzilhada do Sul, no Vale do Rio Pardo, região distante de onde a família vivia. Por conta dessa distância, o lugar se tornou um refúgio de férias da família. Mas há cerca de 15 anos, o pai de Clarissa resolveu apostar na vida rural e foi morar no local. Pouco tempo depois, o avô dela se juntaria ao filho. A proposta era de uma vida mais serena, saudável e tranqüila, nos ares do campo. Assim foi por um tempo, até a morte do pai de Clarissa. A perda do avô também não tardaria.
– A gente se viu no dever de continuar o projeto deles, esse ideal de vida. Fomos pensando. Claro que, muitas vezes, a tentativa de ir pra lá era frustrada, engolida pelo corre-corre. Mas em meio à pandemia, ficamos desempregados. Então, juntamos os trapinhos, o dinheiro das rescisões, o fundo de garantia e falamos: “A hora é agora!”- relembra.
Em 10 de julho de 2020, Clarissa, Marcelo e o filho Francisco, hoje com 16 anos, davam início a uma vida rural, totalmente distinta da que levavam em Porto Alegre. Para o garoto, a pandemia facilitou a adaptação, já que estar preso em um apartamento não tinha comparação a ter um campo aberto, natureza ao redor e tranqüilidade.
O dia a dia de Clarissa passou a ser entre mudas, terra e ferramentas. Chapéu na cabeça e botas os pés são o modelito para circular na “Fazendinha”, como carinhosamente chamam a propriedade. A atenção se voltou ao cultivo da horta orgânica, que garante praticamente 90% do que a família consome, e aos cuidados gerais da propriedade. Todo o trabalho é feito em parceria com Marcelo. Apesar da tradição familiar em lidas do campo, o aprendizado é diário e constante, tanto na produção de hortaliças e legumes quanto na criação de animais. A vida ganhou outro ritmo.
– Acordamos cedo, mas é sem correria. A rotina no campo tem muito a ver com a natureza, com o clima. Então, tem de organizar os períodos de chuva, por exemplo. Quando chove, ficamos curtindo a casa, organizando as coisas – conta.
No interior do interior, Clarissa também encontrou mais tempo para si. A consciência da importância de uma alimentação saudável foi ampliada, o pensamento mais sereno ganhou o espaço das ansiedades urbanas, e os planos são feitos sem a euforia das horas. O tempo ganhou outro tempo.
– Ainda tenho muito a aprender, mas vou mudando a cada dia para melhor. Sinto que encontrei um lugar no mundo.
Transformar-se não é brincadeira
A reconexão de Daniela provocou uma reviravolta profissional e a aceitação de uma personalidade disciplinada e voltada ao trabalho
Estudiosa e disciplinada, Daniela Kolb, 39 anos, não teve dificuldades em construir uma carreira respeitável e bem-sucedida como advogada. Em 2009, esteve à frente da fundação de um escritório de advocacia, cuja clientela cresceu e se qualificou com o atendimento a grandes empresas. No trabalho e na vida pessoal, tudo corria bem, mas o nascimento dos filhos trouxe inquietações, algumas delas inerentes à maternidade, como a angústia de equacionar trabalho e atenção aos filhos, além de uma necessidade de reacender propósitos, algo que Daniela já não percebia com clareza na atividade que exercia. O tempo foi passando e ampliando esses desconfortos.
– Comecei a colocar a culpa no Direito, mas amadureci e não faço mais isso. Na faculdade, eu pensava em fazer Direito Ambiental e, naquele momento, eu estava trabalhando na área societária e tributária, com grandes empresas. Não enxergava mais um propósito, e a maternidade traz essa responsa também – conta.
Em 2018, a advogada sentiu a necessidade de reforçar a espiritualidade e passou a participar dos retiros do Sagrado Feminino, uma filosofia de vida com conceitos que envolvem meditação, ioga, alimentação saudável, rodas de conversa e outras práticas de conexão com a natureza e consigo mesmo. E foi num desses encontros que ela decidiu encerrar as atividades no escritório.
– Numa das nossas rodas de mantras, ao redor de uma fogueira, o condutor da atividade nos entregou dois pauzinhos e pediu que imaginássemos algo que não queríamos mais para jogar ali, na fogueira. Eu coloquei meu escritório no fogo! – diverte-se, relembrando o que um dos gravetinhos simbolizou naquele dia.
Na segunda-feira seguinte ao ritual, Daniela chegou no escritório e anunciou aos sócios que estava deixando o trabalho. Faria, a partir dali, um período de transição, comprometendo-se a cuidar dos processos que já estavam sob sua responsabilidade. Neste tempo, a advogada já havia trocado Porto Alegre pela Praia do Rosa, em Santa Catarina, e mantinha o atendimento aos clientes de forma online. Morar na praia foi parte do desejo de acompanhar mais a vida dos filhos e se reconectar. Deixou para trás uma estrutura doméstica confortável, com direito a babá, cozinheira e faxineira, para abraçar a maternidade com mais plenitude.
– Essa estrutura permitia ter foco nas crianças. Não perdia tempo com o operacional. Até isso eu me questionava: trabalhava um monte e metade do que ganhava era para pagar essa estrutura. Vou ganhar menos, mas diminuir a necessidade de estrutura. Passei a ficar mais com eles, as manhãs na praia… – conta.
Apesar de adorar o papel de mãe, Daniela não perdeu a necessidade de independência financeira e de ter o próprio trabalho. E numa dessas indas e vindas entre Porto Alegre e a Praia do Rosa, teve a ideia de apostar na fabricação de playgrounds criativos, algo que ela já havia observado em países que visitou em viagens com a família. Em uma tarde, Daniela já tinha quase 60 slides de projetos e já mergulhava nos estudos sobre empreendedorismo social, arquitetura e tecnologias. Passou o ano de 2018 imersa nessa busca por informações e conhecimento. No ano seguinte, ela já tinha a Eba! Playgrounds Criativos estruturada como empresa. Neste mesmo ano, a advogada decidiu engravidar do terceiro filho e, de novo, a vida profissional desafiava a maternidade. Daniela buscou terapia e até retiros de silêncio na Índia e no Butão para encarar o novo momento com serenidade. E parece que foi aí, depois de muita meditação, consciência do feminino – e do feminismo – que ela fez as pazes com as próprias contradições e expectativas. Gostar de trabalhar muito não seria mais problema para a mãe Daniela.
– Eu tive a oportunidade de um ócio criativo. Cuidei mais de mim, mas também fui uma mãe full time, algo que eu me ressentia de não ter sido. Bom, mas daí eu pensei: “ok, eu consigo ser essa mãe, mas não quero ser sempre isso”. E está tudo certo.
O trabalho na Eba! trouxe ressignificados. Daniela sempre fez tudo com muito empenho, se reconhece como alguém comprometida. Ela lembra que, quando pequena, em uma atividade escolar cuja tarefa era reunir palavras que se iniciassem com “ch”, a professora orientou que os alunos listassem o máximo possível de vocábulos, mas algo em torno de 20.
Dani fez uma lista com 120 palavras e até a escola se preocupou se aquele empenho não era uma exigência exagerada dos pais da aluna. Não era. Afinco no trabalho é algo que Daniela já entendeu como uma característica natural. À frente da Eba!, ela normalizou esse traço de personalidade e fez dele uma regra na empresa, sem remorsos ou culpas. A transformação não se resumiu a deixar uma profissão e se mudar para a praia. Foi uma redescoberta pessoal.
– Eu sou assim. Sou extraordinária, tenho sócios extraordinários e não quero gente ordinária no núcleo da Eba! Agora eu sei do que gosto e me sinto serena e completa.
Estar na estrada é estar em casa
Luísa vendeu apartamento, deixou o emprego e foi viver como uma nômade digital nas estradas do Brasil e do mundo
O desejo de uma longa viagem pelo mundo cresceu tanto que se transformou em um estilo de vida. Desde 2017, estar em casa para a jornalista Luísa Medeiros, 40 anos, é estar na estrada. Foi naquele ano que ela colocou em prática o projeto de ganhar o mundo. Curiosamente, foi em um momento de parada forçada – uma cirurgia na vesícula seguida de uma fratura no pé – que ela começou a se movimentar para dar uma virada na vida. Sempre esteve latente a paixão por viagens, e a ideia de deixar Porto Alegre ganhava força, mesmo que apartamento, cachorro e emprego sussurrassem o contrário no dia a dia. Então, chegaram os viajantes… Luísa passou a receber em casa mochileiros de diversas partes do mundo pelo serviço de couchsurfing.
– Convivendo com outros viajantes, essa vontade que eu sempre tive de viajar aflorou. Então, de 2016 a 2017, comecei a reorganizar a vida, vender coisas, vender o apartamento, ler sobre minimalismo e ficar com o essencial. Eu precisava liberar espaço na minha vida para viajar mais leve – conta.
Os novos rumos se iniciaram pela Colômbia. A ideia era descer de lá até a Patagônia. Na primeira etapa da viagem, até o sul do Equador, Luísa contou com a companhia de uma amiga. Fizeram de ônibus ou caronas essa etapa. Depois, cada uma seguiu sua viagem. Apesar do planejamento prévio e de ter reservado economias para a aventura, Luísa viu o dinheiro evaporar mais rápido do que imaginava, mesmo cultivando hábitos espartanos durante a viagem.
Em São Pedro de Atacama, no Chile, a jornalista começou a trabalhar para ganhar dinheiro e não mais uma ocupação temporária em troca de apoio logístico ou hospedagem. Foi ali, no alto da Cordilheira dos Andes, que Luísa vislumbrou um futuro como viajante. A rota pessoal seria reconfigurada.
Para se manter na estrada, Luísa trabalhou como recepcionista, tradutora, em comunicação e em navios de cruzeiro. Com a pandemia, voltou ao Rio Grande do Sul para se reorganizar, época em que também criou o blog PraMochilar, em que narra suas experiências, dá dicas dos lugares por onde passa e compartilha dúvidas e anseios.
Em meados de 2021, já com vacina no braço, Luísa retomou a estrada, dessa vez com um minimotorhome e com um roteiro dentro do Brasil, com paradas mais prolongadas. Atualmente, ela se mantém como uma “nômade digital”, trabalhando para uma agência de publicidade. E esse “escritório na estrada” exige organização para garantir sinal de internet e também segurança para os equipamentos. Os perrengues são do jogo, especialmente se for uma mulher a protagonista dessas aventuras. Luísa reconhece que o medo da violência existe, mas mesmo diante dele, a presença feminina tem se sobressaído entre os mochileiros, e a sororidade entre as viajantes tem sido outro ponto bacana em cada parada, além das paisagens, dos sabores, das culturas e das amizades.
– Infelizmente, o machismo ainda está muito enraizado não apenas no Brasil. Uma das coisas mais “engraçadas” que eu ouvi, e não foi pouco, era que eu estava viajando pra “arrumar um marido gringo”. Ou que eu trocava hospedagem por favores sexuais. Em alguns países mais machistas, como Equador e Bolívia, foi muito difícil um homem oferecer ajuda (carona, hospedagem, informação) sem assédio no pacote. É preciso ter muito jogo de cintura e não se calar. Fui ajudada por outras mulheres viajantes e pude ajudar também. Existe um fio invisível que nos faz perceber nossas iguais e nos ajudarmos.
Até agosto, o endereço de Luísa deve ser a pequena comunidade de Lençóis, no coração da Chapada Diamantina, na Bahia. O projeto agora é desbravar o Brasil menos convencional ao turismo
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