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Negra Jaque: não duvido mais de quem eu sou.

Ela é a Negra Jaque. Nasceu Jaqueline Trindade Pereira, esticou o cabelo preso para não parecer tão negra. Ralou na vida com sangue, suor e lágrimas. Até descobrir o suingue, a palavra, o melhor tom para construir uma trilha musical para sua vida. E sacou o maior lance: o conhecimento salva. Nos tira do lugar. Mas, no caso dessa rapper, que já foi rainha do hip hop, ela nunca saiu de um lugar que inaugurou como sentido para sua vida: ela é do morro e é na comunidade que ela tem seu espaço de existência e luta. E tem mestrado em educação pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Não separa dos nossos, os que nos constituem. Filha de doméstica e pai que se jogou nos braços do crack, a Negra Jaque fez o movimento mais revolucionário para uma preta: aprendeu o jogo lá fora e modificou a vida por dentro. Na periferia, no Morro da Cruz. 

Além de cantora, é mãe, ativista social, educadora popular e professora.  Ativista do movimento feminista, ela compõe todas suas músicas e enfatiza, nas letras, a força das mulheres para conquistar seu espaço.

Com a música entrou em contato com suas angústias e de todas as mulheres negra. Criou um caderno de memórias. E cria seu filho, Eric.

 No palco da Fala Feminina, a Negra Jaque. Lição para todas as mulheres!

Fatima Torri, editora

Confira a entrevista da artista gaúcha para a Fala Feminina:

Fala Feminina: Quem é a Negra Jaque?

Negra Jaque: A Negra Jaque é um codinome criado em 2012. O que sustenta essa história da Negra Jaque? Eu sou artista desde os meus 17 anos, compositora de música rap, mas naquela época eu era só um membro de um grupo coletivo de hip-hop, eu era a MC Jaque, uma das MCs no meio de cinco pessoas.

Fala Feminina: Tinha mais alguma mulher ou era só tu?

Negra Jaque: Tinha mais duas mulheres, por incrível que pareça, o grupo era misto. Um oásis no meio de uma realidade de grupos masculinos de cultura hip-hop. Aí, o grupo terminou em 2009 e em 2012 eu decidi fazer minha carreira solo com esse nome: Negra Jaque. A questão do negra acompanhar o meu nome é por um posicionamento político, para garantir que a estética negra seja valorizada. Então, eu sou artista, ativista, pedagoga, hoje estudante de pós-graduação fazendo mestrado, mãe do Eric, de 14 anos, moradora de uma comunidade chamada Morro da Cruz em Porto Alegre e sou gestora de um centro cultural.

Fala Feminina: Como é que a Negra Jaque entra nessa vida?

Negra Jaque: Eu moro em uma comunidade na Zona Leste de Porto Alegre, minha família é toda daqui. Meu pai era funcionário público, trabalhou no DMAE, e minha mãe era empregada doméstica. Ela ficava responsável 24 horas por toda nossa criação, éramos quatro irmãos. Meu pai, mesmo que morasse em casa, era usuário de crack. Então, quem cuidava da gente era minha mãe.

Aqui na comunidade não tem escola de ensino médio, então, quando eu fiz 14 anos e concluí o ensino fundamental, precisei sair para poder estudar. Aí, fui para o Instituto de Educação. Parece que essa mudança de eu não estudar mais na comunidade foi um divisor de águas.

Fui a uma escola próxima ao Centro, em um bairro nobre, totalmente diferente do meu, e eu era uma das três pessoas negras em uma turma de 40 pessoas. Isso foi bem chocante. Eu era uma menina negra, não era só uma menina. 

Então, quando eu mudo de escola eu também começo a ampliar a minha visão das coisas: que existiam museus, teatro, que a gente podia ter acesso a essas coisas, que a gente podia circular pela cidade, que tinha carnaval, que tinha blocos, que tinha muita manifestação cultural na rua. A gente, por estar na periferia, não tinha acesso a cultura.

Quando eu fui para o ensino médio, fiz o Magistério junto para garantir uma profissão, porque quando eu troquei de escola já tive que trabalhar. Com 14 anos, tive o meu primeiro trabalho para poder pagar as passagens para ir para a aula. Foi em uma escola na Lomba do Pinheiro, em uma turma de serviço de apoio socioeducativo. Aí nunca mais parei de dar aula. 

Eu conheci o hip hop através do Paulo Freire,

estudando para ser professora. Claro, que a gente tinha acesso em função da estética do próprio morro. As pessoas escutavam Racionais, mas essa complexidade de um movimento que é tão grande e está em todo o mundo, eu descobri estudando. Paulo Freire contava sobre as formas de organização da juventude no mundo. O primeiro livro que eu li de forma mais densa foi Pedagogia da autonomia. Isso me forjou como pessoa, a partir daí eu já fiz um curso de educação popular com um educador maravilhoso chamado João Werlang, que também abordava a filosofia do Paulo Freire e outros pedagogos que trabalhavam a educação popular na raíz. Os nossos trabalhos de estágio deste curso eram na própria comunidade.

Fala Feminina: Em algum momento tu foste discriminada ou por outras mulheres ou pelos homens na própria comunidade?

Negra Jaque: Na comunidade não. Aqui a gente está nessa condição de enxergar pessoas pretas e pessoas brancas pobres, a gente está numa condição de (sub)igualdade. Eu sei que o nosso corpo recebe todas essas mazelas do racismo, as brincadeiras quando pequenas, isso apareceu, isso não tem como apagar: “cabelo duro, cabelo bombril”. Na nossa infância, todas as meninas negras passam por isso. Principalmente na escola, que é um espaço tão rico de oportunidades, mas também é um berço de violência. É o primeiro espaço violento coletivo que a gente tem.

Fala Feminina: Como foi para ti viver a tua sexualidade? Há um ano a gente fez matérias na Fala Feminina e falou muito sobre a solidão da mulher negra. A gente viu que as mulheres negras são muito solitárias, mas não são infelizes. Na comunidade tem muita alegria e tal, mas como foi pra ti isso?

Negra Jaque: Eu passei por períodos de vivenciar na pele essa questão da solidão. O que acontece? A gente é educada para não existir, ser invisível, se apagar, desde pequenininhas. Então, o período da adolescência é muito difícil porque a bunda cresce, o peito cresce, o cabelo cresce e é uma estética negra que precisa ser naturalizada, mas as outras pessoas não sabem lidar com isso e nos machucam, nos violentam e nos ofendem. Então, acho que o período da adolescência, de se conhecer, de entender que esse corpo é bonito e que está tudo certo, foi um período bem difícil.

Quando eu encontrei o pai do Eric, a gente tinha muitas questões porque ele é um homem branco e mora na comunidade. A gente tinha muitas discussões até mesmo dentro da família, falas assim: “até que deu uma cruza boa”, como se a gente fosse bicho. Então, a gente tinha muitas questões com relação a isso e depois que a gente separou, lá em 2012, a solidão veio muito pesado, porque era uma mulher negra e com filho.

Hoje, eu vejo que a gente está em um espaço de fortalecimento da nossa identidade, muito melhor do que há 10 anos, porque a gente já consegue dizer não. “Não, eu não quero ser tratada assim. Eu não mereço isso, eu mereço algo melhor”, sem falar na questão da violência em que as mulheres negras estão mais expostas. Não é a Negra Jaque que está falando, são dados que mostram que a violência doméstica atinge muito mais as mulheres negras, por conta dessa objetificação, dessa nossa comparação com algo de menos valor.

Fala Feminina: A Simone Beauvoir tinha uma frase que eu gostava muito em que ela dizia que a mulher é o negro do mundo que, na verdade, a mulher é sempre a última na cadeia. Tu concordas com isso?

Negra Jaque: Eu acho que é um comparativo com as violências e o processo de exclusão. Porque pessoas negras e pessoas brancas estão buscando equiparidade. Se a gente colocar em uma escala, a mulher negra está em último lugar: vem o homem branco, a mulher branca, o homem negro e depois a mulher negra. Então, a partir da visão de uma mulher branca, vai aparecer essa fala da mulher ser o negro do mundo em função das violências, que para mim não são equiparadas. Enquanto houve movimentos de queimar sutiãs e as mulheres brancas foram para as ruas, as mulheres negras trabalharam, estavam cuidando dos filhos das mulheres brancas para elas poderem ir às ruas queimar sutiã. Eu acredito muito que a partir do prisma da mulher branca sim, a gente pode considerar essa frase como um comparativo.

Fala Feminina: Tu achas que a violência já foi maior?

Negra Jaque: Eu acho que a violência não diminuiu, a gente que está com ferramentas mais potentes para denunciar. Acho que as pessoas estão tendo uma maior consciência de denúncias. As mulheres, por hoje terem um poder aquisitivo maior, já podem controlar um pouco mais a própria vida: “Não quero ficar aqui, tenho o meu dinheiro, o meu trabalho, vou embora”.

Fala Feminina: Como é a história da música na tua vida? Hoje tu vive disso?

Negra Jaque: Vivo disso. A música veio na minha vida com 17 anos, até então eu dava aula. A minha formação como professora me levou para várias escolas e eu fui coordenadora pedagógica a maior parte do tempo, mesmo trabalhando com a música. Então, eu tinha o rap e era coordenadora pedagógica de uma escola infantil, aqui na comunidade, a Escola São Guilherme, um espaço acolhedor, onde a diretora era líder comunitária, me ensinou e me ajudou muito. Por causa dela eu tenho a minha casa própria, porque teve uma política para as mulheres aqui na região na época do Minha casa, minha vida.

Voltando para a música, foi um caminho que eu achei de escrever as minhas angústias, tudo aquilo que eu não concordava, em forma de poesias, em forma de frases e aí coloquei em cima de um beat e foram criando esses raps. Sempre foi uma válvula de escape de falar as coisas que eu não concordava, sobre o mundo, sobre ser mulher, sobre ser mãe, sobre estar nessa comunidade, sobre não estar, sobre ser artista. É como se fosse um grande caderno de memórias. Minhas referências sempre foram as músicas brasileiras: Beth Carvalho, Alcione, Elza Soares, essas são as mulheres que eu sempre escutei.

Fala Feminina: Tu achas que tu hoje és uma mulher negra poderosa? Que sentimento é que te move?

Negra Jaque: A trajetória, né. Eu estou há 15 anos na cultura hip hop e fui responsável por projetos inéditos na cidade e o quanto foi difícil construir do nada, não ter as coisas e a partir desse trabalho de rede, principalmente das mulheres que é muito forte e disseram: “Jaque, vamos que eu te ajudo. Não tem disco de mulheres, nós vamos fazer o coletivo”. Porto Alegre não tinha nenhum disco feminino de hip hop. Eu trabalhei muito para dizer: “Olha eu fiz isso, eu criei o projeto tal, eu tenho três discos, eu trabalhei como coordenadora de música, fui premiada”. Então, assim, eu tenho uma trajetória que eu batalhei para ter, eu trabalhei, estudei. Ser uma mulher poderosa é isso: ter consciência da luta que tu teve para chegar e concluir todas as tuas metas.

Fala Feminina: E sobre exposição do corpo?

Negra Jaque: O que eu penso? A partir do meu prisma, eu acho que cada mulher pode fazer o que quiser com o seu corpo, só que isso não pode ser a única forma de manifestação. Eu escolhi não falar só disso, eu escolhi falar sobre outras coisas, ter narrativa sobre vida, cotidiano, sobre meus sentimentos. Não que eu não fale dele, fale desse poder, porque sexo é poder, falar de corpo é poder, mas eu quero falar de outras coisas também.

Fala Feminina: Dá para se dizer que a Negra Jaque hoje não duvida mais de quem ela é?

Negra Jaque: Não duvida. Eu tenho certeza do que eu sou e de onde eu quero chegar.

Fala Feminina: O que tu és e aonde tu queres chegar?

Negra Jaque: Eu sou uma mulher forte, com capacidades infinitas de participar de infinitos projetos e infinitas ações e eu quero projetos internacionais.

Veja o trabalho da Negra Jaque no YouTube.

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