Maternidade, Trabalho, Vida

A força da pele preta

Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.”  – Angela Davis – Filósofa norte-americana

Kamala Harris, Oprah Winfrey, Michelle Obama, Beyoncé, Djamila Ribeiro, Elza Soares. O que elas têm em comum, a gente sabe. O sucesso e a grande visibilidade internacional ou nacional, além da cor da pele. Por trás disso, histórias de rejeição, solidão, cicatrizes e muita luta. 

Ao dar sequência a essa lista, surgiriam naturalmente outros grandes nomes, mas não com a mesma facilidade que se a lista fosse de mulheres brancas bem-sucedidas. Por isso, as conquistas das mulheres negras merecem ser conhecidas e reconhecidas, até que a lista seja tão incontável que fique difícil escolher. Especialmente quando se celebra o Dia da Consciência Negra. 

Uma líder mulher incomoda muita gente. Uma líder mulher e negra incomoda muito mais.

Elaine dos Anjos, negra, periférica, natural de Belo Horizonte (MG), é hoje executiva da Arezzo, considerada a maior marca de varejo de calçados femininos fashion da América Latina. Há cerca de 10 anos foi transferida para a sede da empresa, em Campo Bom, uma das regiões do Vale Germânico no RS, onde sentiu na pele a dor do exílio causado por suas origens e sua cor, mas não se deixa abalar.

Criada pela tia, a quem se refere como mãe, Elaine sempre sonhou em trabalhar na unidade da Arezzo de sua região, assim como grande parte da vizinhança do bairro Glória, em BH. “Era um emprego cobiçado. Todo mundo trabalhava lá, então, ficava tipo uma feirinha na porta da empresa. Saíam com dinheirinho no bolso e iam comprar as coisas.  Era tudo o que eu queria”, conta ela. De família humilde, mães domésticas (a de sangue e a de criação), avô marceneiro, um tio serralheiro e outro residente da Febem até 18 anos, não tinha grandes ambições. Trabalhou como empregada, babá e em uma pequena fábrica de sandálias artesanais. Até que, aos 18 anos, o vento soprou ao seu favor.

“Eu tentei entrar na escolinha de sapateiros da Arezzo, mas tinha uma fila enorme e eu não consegui ficha de inscrição, mas, tive uma oportunidade para ser auxiliar de produção, em janeiro de 1993. Estava terminando o ensino médio e fazia técnico em contabilidade. Depois que eu terminei, precisava fazer um estágio de algumas horas para pegar o diploma, aí pedi ajuda na contabilidade. Precisava de 13 dias para completar. Esses 13 dias já são quase 28 anos. Hoje, sou gerente contábil-fiscal da Arezzo”, conta com orgulho.

A linha do horizonte se define

Elaine não pensava em fazer faculdade, apesar da empresa oferecer aos funcionários. Para ela, estar trabalhando em um escritório já era um grande salto.

Eu não tinha uma pessoa próxima que tivesse feito faculdade para ser referência. Minha família toda era negra. Na minha vizinhança, a grande maioria”

Incentivada por uma colega de empresa, venceu a descrença e cursou Contabilidade na Newton Paiva. “Eu comecei o curso e engravidei. Tranquei por dois anos. Meu ex-marido não dava muito incentivo, ele também é negro e não teve essa referência em casa, não fez faculdade. Trabalhava na época como estoquista de loja. Depois passou a ser vendedor em shopping. Chegou a ser subgerente, mas não foi pra frente e hoje é corretor de imóveis. Ficamos casados sete anos”, conta a executiva.

A discriminação começou a acontecer pelos próprios amigos. “Eles diziam que eu estava ficando metida só por estar fazendo faculdade. Eu era míope pra essa questão de cor. Passei a enxergar as diferenças, as desigualdades, já adulta, quando deixei de estar no meio da maioria.”

Mudança bruta

“Eu só saí de Belo Horizonte pra vir pra cá. E a questão do preconceito racial ficou mais forte nesse momento. Quando vinha a trabalho, percebia olhares. Eu não ficava mal por isso, mas a partir do momento em que eu fui convidada a vir morar, começou a ser uma questão pra mim. Passei a observar mais, tendo que pensar se era o que eu queria por conta dos meus dois filhos. Cheguei a falar na empresa: ‘olha, eu não sei se eu quero expor meus filhos a situações de racismo’”, conta Elaine.

Ela segue o relato: “Hoje paro para pensar: quantas vezes sofri racismo sem ter percebido e aceitei a situação? Na escola, por exemplo, eu tenho um caso na primeira série do fundamental, num colégio público. Tive muito piolho e, como eu comentei, não fui criada pela minha mãe, não tinha uma pessoa que cuidasse de mim. A forma mais fácil era raspar o cabelo. Então, eu tinha o cabelo bem raspadinho e como minha mãe [sua tia] trabalhava em casas de família, como doméstica, ela trazia roupas dos filhos da patroa.  Eu vestia coisas de menino. Aí, eu cheguei na escola, e a professora fez uma separação e me colocou junto com eles e uma colega falou assim: ‘professora, mas ela é menina’, e a professora falou: ‘quem?’ e a menina respondeu: ‘a neguinha ali’. Eu queria me esconder, mas não porque ela falou que eu era neguinha, que não é um termo legal, é muito pejorativo. Naquele momento, não foi o que me doeu, o que doeu foi ela ter me chamado de menino. Esse foi um caso, e se a gente pensar tem vários outros”.

Maternidade e carreira

A separação aconteceu quando os filhos Samuel e Julia tinham 7 e 2 anos, respectivamente.  “Criar os dois sozinha, construindo a carreira, foi bem complicado. Quando aconteceu o divórcio, ainda em BH, meu ex-marido falava: ‘tu tens que sair para eu ficar aqui [no apartamento onde moravam] com as crianças’, e ele não saía. Então peguei minhas coisas e saí. Morei no meu avô por um ano e vendi o apartamento que nós morávamos. Ele só saiu do apartamento no dia de entregar a chave.”

Depois, vieram ao Rio Grande do Sul, e encontraram novos desafios. “A gente pode frequentar bons lugares com o emprego que eu tenho, os meus filhos estudam numa escola que só tem brancos. Agora o Samuel está na universidade, mas, quando estava na escola bilíngue aqui de Novo Hamburgo, eram eles dois e mais dois meninos negros. Todos eles já tiveram problemas com racismo, o que foi bem difícil, era uma coisa que eu já temia quando eu fui convidada pra vir pra cá. Eu pensava exatamente nisso e aconteceu, mas conseguimos superar a situação.”

Sujeita ao celibato

“Do ponto de vista afetivo, sexual, vivo a tal da solidão da mulher negra. Eu realmente não tenho namorado, já estou há bastante tempo sozinha, tive pouquíssimos encontros ou sexo aqui no RS. Então, as pessoas falam que os homens podem ter medo da minha independência, mas e aí, por conta disso eu tenho que me rebaixar?”, indaga.

“A gente fica nesse limbo, que é a situação que eu acho que me encontro. Hoje, no meu meio não tem muitos negros. Homens negros disponíveis não existe nenhum. E quando olho pros brancos, fica essa questão: ‘é negra’. Será que é só porque sou negra ou porque sou bem-sucedida? Então, são questões que eu me pergunto e não acho resposta. Por isso eu vivo sozinha.”

“Você quer saber quanto eu ganho
Você quer saber quanto eu gasto
Sei que pra você parece estranho
Me ver bem-sucedida no que eu faço

Eu vim de baixo, nem por isso me rebaixo
Sigo assumindo cachos, do meu jeito, eu me encaixo
Sem pressa, vou dar mais um passo
(…)

Querem que eu fique calada
Sou eu que dou a cara a tapa
Chega, agora estou farta
Vou faturar, vou vender, sou a marca
Nunca foi sua criada
Tô livre das suas amarras
Agora correr na estrada
Tô no controle, só dando risada”

 Trecho de “Bem-sucedida” de Karol Conka

Confira um breve resumo sobre a trajetória de outras mulheres negras bem sucedidas

Shonda Rhimes: a premiada escritora, roteirista e diretora americana, natural de Illinois (EUA), tornou-se a afro-americana mais bem paga da TV americana. 

Ela cresceu no subúrbio, em uma família com mais seis irmãos, mãe professora e pai administrador. Formou-se em inglês e trabalhou com publicidade por um tempo para pagar as contas, mas a sua paixão sempre foi a escrita. Hoje é autora de várias séries de sucesso, como Grey’s Anatomy, Scandal e How to Get Away with Murder.

Beyoncé: é cantora, compositora, atriz, modelo, dançarina, produtora, diretora e roteirista norte-americana. Seu pai é um afro-americano e sua mãe é descendente de crioulos da Luisiana. Começou cantando no coral do colégio e da igreja que frequentava. Aos oito anos, ingressou no grupo musical Girl’s Tyme, que em 1996 mudou o nome para Destiny’s Child. Enquanto estava no grupo, já atuava em carreira solo. Em 2005, o grupo anunciou seu fim. A cantora vem conquistando as primeiras posições das paradas da Billboard ano após ano e colecionando Grammys.

Djamila Taís Ribeiro dos Santos: é uma filósofa, feminista negra, escritora e acadêmica brasileira, pesquisadora e mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Atualmente é colunista da Folha de S. Paulo. Djamila Ribeiro tornou-se conhecida por seu ativismo na internet sobre negritude no Brasil. Em 2016, foi nomeada secretária-adjunta de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo.

Elza Soares: cantora e compositora carioca eleita em 1999 pela Rádio BBC de Londres como a cantora brasileira do milênio. A escolha teve origem no projeto The Millennium Concerts, da rádio inglesa, criado para comemorar a chegada do ano 2000. Também aparece na lista das 100 maiores vozes da música brasileira elaborada pela revista Rolling Stone Brasil. 

De família humilde, cresceu em um cortiço no Rio de Janeiro. A infância terminou cedo. Aos 11 anos, foi obrigada a se casar com um amigo do pai, bem mais velho. Menos de um ano depois, deu à luz ao primeiro filho. Durante a adolescência, Elza sofreu agressões e violências sexuais que a marcaram pelo resto da vida e que se transformaram em protestos que ela conta em suas músicas. 

A primeira apresentação pública da Elza Soares não aconteceu por bons motivos: com o filho pequeno doente, se inscreveu para participar do tradicional programa de calouros do radialista Ary Barroso. Ela se apresentou escondida da família. Com 32kg, usando roupas emprestadas da mãe, presas com alfinetes pra não caírem, chamou atenção do público e do apresentador. Naquele dia, Elza não só ganhou o prêmio, como também disse uma das frases mais icônicas de sua carreira. Ao ser questionada por Ary Barroso sobre “de que planeta vinha”, Elza respondeu: do planeta fome.

A aparição no programa não resolveu os problemas de Elza. Seus dois primeiros filhos morreram ainda bebês por desnutrição. Em 1950, teve uma filha sequestrada, e só voltou a reencontrá-la 30 anos mais tarde. Mais ou menos na mesma época, Elza ficou viúva, e teve que fazer de tudo para sustentar os filhos. Na década de 60, participou de outro concurso musical no rádio, e venceu novamente. Dessa vez, ganhou um contrato fixo pra se apresentar semanalmente.Com o rádio e as apresentações em casas de show, Elza finalmente conseguiu começar a viver de música. 

Alguns anos depois, casou com o jogador de futebol Mané Garrincha. A relação conturbada durou 16 anos e terminou devido a uma nova onda de agressões físicas. Um ano depois da separação, Garrincha faleceu, deixando um filho pequeno com Elza, que ficou conhecido como Garrinchinha. O menino morreu três anos depois, aos nove anos, em um acidente de carro.

Em 2013, Elza Soares sofreu um acidente no palco e desde então passou a se movimentar com muita dificuldade. Em 2014 ela passou por uma cirurgia em que precisou colocar 8 pinos na coluna. Apesar de tudo isso, e já aos 90 anos, continua se apresentando e gravando novos sucessos. Hoje, ela só se apresenta sentada e praticamente imóvel, mas não perde a imponência. Promete cantar até morrer. 

Kamala Harris: vice-presidente eleita do Estados Unidos, Kamala será a primeira mulher e a primeira pessoa negra a ocupar o cargo. Filha de mãe indiana e pai jamaicano, passou a vida estudando em escolas “de brancos”. No ensino superior, sua irmã Maya, foi estudar em Stanford, mas Kamala quis estudar na Howard University, em Washington, conhecida por ser “historicamente negra”. Graduada em Ciência Política e Economia, em 1986, Kamala foi para São Francisco para estudar Direito na Universidade da Califórnia, formando-se em 1989. No ano seguinte, ela foi admitida na Ordem dos Advogados da Califórnia. Foi a primeira negra procuradora na história do estado da Califórnia e a segunda mulher a ocupar uma cadeira no Senado nos Estados Unidos.  

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