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A porta-voz de Artemisia

Pintora italiana do século 17, Artemisia Gentileschi foi redescoberta por Cristine Tedesco, historiadora que por uma década dedicou-se a conhecer sua vida e obra. O motivo? O encantamento pela coragem da artista de contrariar padrões da época e deixar um importante legado acerca das representações do feminino.

A historiadora Cristine Tedesco mergulhou na história de Artemisia Gentileschi, pintora italiana do século XVII, cuja arte surpreende por confrontar as visões de gênero da época e por retratar situações de abuso vividas por ela. A imersão foi tão profunda que deu origem a um livro lançado recentemente.

Cristine Tedesco conheceu a história de Artemisia Gentileschi (1593-1654) na graduação e ficou fascinada. Interessada nas inúmeras lacunas no que se refere ao saber histórico sobre a atuação das mulheres em diferentes períodos, ficou inquieta ao perceber que a artista era reduzida a discípula do pai e seguidora de Caravaggio. “Eu me perguntava: quem foi Artemisia Gentileschi? Ela alcançou reconhecimento e prestígio como pintora do Barroco? Exerceu influência sobre os artistas da época? Existiram outras pintoras contemporâneas de Artemisia? Como se dava o acesso das mulheres a esses saberes?”, comenta Cristine. 

A vontade de responder tais questionamentos a levou a uma pesquisa realizada ao longo de uma década, passando pelo mestrado na UFPel e doutorado na UFRGS, além de um ano de estudo na Itália, com direito a estágio de doutoramento na Università Ca’ Foscari de Veneza.

“Eu criei grande admiração pela obra da Artemisia, pelo que ela fez na época em que viveu, por ter atuado como pintora num ambiente majoritariamente masculino. Inclusive, a admiração pelas obras da Artemisia e a curiosidade em saber mais sobre ela me levaram a lugares inimagináveis para alguém da minha origem social”, compartilha a historiadora.

O que mais chama a atenção de Cristine sobre Artemisia é o fato de não ter se limitado aos temas mais comuns às pintoras da época, como natureza morta e retratos. “Ela chegou aos gêneros da tradição veterotestamentária, da mitologia, da história, às figuras humanas em movimento e aos nus. Além de ter deixado um importante legado acerca das representações do feminino, a pintora construiu um espaço de atuação para si mesma, um processo contínuo que se deu no interior de relações e tensões de gênero, num lugar de perpétuas disputas”. 

Para ela, assim como a pintora, hoje, também precisamos enfrentar os limites de nosso tempo. “Devemos colaborar para construir uma realidade digna e de reconhecimento profissional para as mulheres, percebendo nossa capacidade de protagonismo enquanto sujeitos históricos”, conclui.

Judite decapitando Holofernes

A cena do Antigo Testamento, uma das preferidas dos artistas barrocos, mostra o general assírio Holofernes, inimigo do povo israelita, e a mulher que o executa ajudada por sua serva em nome de seu povo, Judite. A versão de Artemisia Gentileschi, uma de suas obras mais conhecidas, é mencionada por alguns pesquisadores como uma metáfora à vingança contra seu professor Agostino Tassi, também pintor, de quem sofreu estupro. A visão de Cristine é que reconhecê-la exclusivamente por uma obra que possivelmente seja inspirada em um momento cruel de sua vida pode reduzir todo legado artístico da pintora e, como ela comenta, “reproduz estereótipos do feminino vingativo”.

Judite decapitando Holofernes – Artemisia Gentileschi

Artemisia nasceu em Roma em 1593. Cresceu no atelier do pai, o pintor Orazio Gentileschi, proeminente artista da época. Aos 17 anos, seu talento fez com que o pai convocasse Agostino, artista querido pelo alto clero do Vaticano, para ensinar a filha. O que, após meses de assédio, acabou em estupro. Os detalhes e testemunhos do crime encontram-se em transcrições do julgamento, no qual houve tortura à pintora, além de exames ginecológicos em pleno tribunal. Cristine teve acesso ao interrogatório, publicado em latim e língua italiana antiga. “Para tradução, apoiaram os freis do Museu dos Capuchinhos de forma voluntária, o que inclusive é também uma publicação que a gente pensa em desenvolver nos próximos anos, inédita em língua portuguesa”, garante.

Ao estuprador de Artemisia, pouco aconteceu devido ao relacionamento próximo do Papa. A acusação feita foi de danos materiais, uma vez que, à época, uma garota que não fosse virgem era considerada mercadoria estragada, o que gerava desonra para a família. Para Artemisia, restou um casamento arranjado às pressas com um homem chamado Pietro Antonio Stiattesi, que a levou de Roma para Florença. Isso porque Agostino era casado, senão caberia a ele o matrimônio.

Pelo menos outras quatro pinturas da artista representam jovens mulheres em situações vulneráveis. Supõe-se, ela mesma. Mas seria uma visão limitada permitir que Artemisia fosse lembrada apenas pela desgraça do estupro. “Mais do que pintora, ela era uma intelectual atenta aos conhecimentos de literatura, filosofia e ciência da época. Seus quadros são repletos de referências a Ovídio, Dante Alighieri e Galileu Galilei, de quem foi aluna”, reforça Cristine. 

Por mais de 400 anos, Artemisia foi ignorada pela classe artística e pela academia, com muitas de suas obras creditadas ao pai. Apenas no século 20 o movimento feminista a redescobriu como um dos seus ícones. O trabalho de 10 anos de Cristine sobre a artista italiana, com diversas descobertas feitas em sua imersão na Itália, está compilado em seu livro “Artemisia Gentileschi: Trajetória biográfica e representações do feminino”, da editora Oikos. Impossível não considerar o peso da contemporaneidade do trabalho e biografia de Artemisia e entender a razão da entrega de Cristine.

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