Apenas Meninas é um filme da diretora Bianca Lenti que retrata a extrema pobreza das meninas que são levadas ao casamento cedo demais. Gravado nas periferias, onde a pobreza atinge em cheio os mais vulneráveis, suas cenas mostram um mundo de mulheres. São avós, mães, filhas, netas. Um exército que batalha pela sobrevivência ajudando umas às outras. As relações são monoparentais. As mães assistem a todos, proveem a família com seu trabalho, sendo diarista o mais comum deles. As meninas, em média, casam-se aos 13 anos… No entanto, há poucos homens, a maioria é de rapazes que se reproduzem e partem, seguem em frente. Aliás, praticamente não há homens no cotidiano desse mundo.
Gravidez na adolescência e o desejo de abandonar um lar cheio de conflitos figuram entre as razões que levam tantas meninas, ainda hoje, a essas uniões. Algumas dão sorte. Encontram no parceiro alguém que as incentiva a estudar, a crescer com dignidade. Contudo, nem mesmo esses casos justificam que tantas meninas enxerguem no casamento uma fuga de famílias agressoras. Não costuma dar certo. Muitas trocam o que lhes resta de infância pelo trabalho doméstico.
A evasão escolar é enorme. Por isso, as meninas que se casam precocemente são chamadas de vítimas. Pois nem o contexto conjugal deveria fazer com que abandonassem a educação, um direito constitucional de crianças e adolescentes.
Por muitas vezes serem as únicas provedoras, essas mulheres não conseguem, óbvio, cuidar de tudo. E, assim, as portas se abrem para o tráfico e também para o abuso sexual, em grande parte dos casos, cometido por padrastos. A cena das crianças fazendo balão com preservativos denuncia a situação. As meninas iniciam a vida sexual sem capacidade de discernimento sobre tudo o que envolve uma possível gravidez precoce, como ilustra a frase de uma delas: “Quero ser com o meu filho o que minha mãe não foi para mim”. Além disso, muitas falam em “consertar o marido”, ajudá-lo a ser melhor… Uma ilusão que escancara a falta de reflexão sobre o futuro que as aguarda, repleto de trabalho para sobreviver e escasso em tempo para o desenvolvimento pessoal. E, nesse ritmo, muitas apenas repetem as histórias de suas parentes mais velhas.
As meninas contam com as parteiras no momento do trabalho de parto. Quando o pai está presente, ele assiste ao nascimento junto com sua própria mãe e a mãe da parturiente.
Uma das personagens do documentário é uma mãe que se queixa da proibição de entrar no lixão de Brasília. Lá, ela conseguia roupas, sapatos e até eletrodomésticos em bom estado.
Dados
• No Brasil, 75,5% das mulheres vítimas de violência apontam para os maridos e namorados como os causadores de sua situação de violência.
• Segundo o censo de 2010, as uniões infantis atingiam, àquela época, 554 mil meninas de 10 a 17 anos no país, e mais de 65 mil delas tinham entre 10 e 14 anos de idade. Isso significa que, do total nacional de 30 milhões de meninas, entre crianças e adolescentes, 1,85% foram vítimas de casamentos infantis, sendo 0,21% menores de 15 anos.
• 42,5% das vítimas são meninas e mulheres entre 16 e 24 anos; e 56%, pretas e pardas. Essas jovens não conseguem ir à escola. Precisam sobreviver. E muitas se escondem com seus olhos roxos. E levam anos para entrar em pânico.
• De acordo com o IBGE, em 2016, o número de casamentos e/ou uniões gerais no Brasil foi de 1,09 milhão. Desse total, 137.973 incluíram meninas ou meninos com até 19 anos. Contudo, choca a enorme diferença quando especificamos por sexo: foram 28.379 uniões de meninos, e 109.594 uniões de meninas (10% do total de novas uniões no país).
• A realidade está mudando. Entre 1999 e 2019, do total de nascimentos registrados, o percentual de mães de até 20 anos de idade caiu de 21,4% para 14,3%, enquanto, entre mães de 30 a 34 anos, cresceu de 14,9% para 21,1%.
Como os números mostram, a realidade brasileira já foi muito pior. No entanto, ainda que os índices mostrem um avanço, não podemos achar normal que até mesmo uma única menina seja forçada a se casar. Nem gravidez precoce, nem miséria justificam tamanha violência.
Muitas mulheres se ligam às partes positivas dos homens que amam. Quase como um ato de fé, apenas crença. E ignoram que estão com uma pessoa muito perigosa. É a síndrome do sapo ferido. A água vai esquentando aos poucos. Não percebem que estão tendo suas vidas violentadas.
Desde fevereiro de 2019, é proibido que menores de 16 anos se casem no país, sob qualquer circunstância. No entanto, a união informal, o “morar junto”, ainda persiste em muitos lugares. O que podemos fazer? Que não nos calemos. A Central de Atendimento à Mulher, disponível 24h por dia pelo número 180, é gratuita e acolhe mulheres em situação de violência. As denúncias, inclusive, podem ser anônimas, e são encaminhadas aos órgãos competentes. Porque reclamar da violência, presenciá-la e não denunciar é ser conivente com ela. Na síndrome do sapo ferido, que sejamos quem interrompe o cozimento.
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