Rapper Negra Jaque: “Pé de pobre não tem número”

Uma mulher feito boneca russa, múltipla, poderosa no palco e na vida justamente porque é uma mulher normal. Talvez cansada, como eu, você e tantas outras mulheres. E que tenta fazer o seu melhor. Esta é a rapper Negra Jaque.
rapper negra jaque

“O que pretendo? Que os projetos que criei tenham autonomia sem mim, que eu consiga só fazer música e ficar no universo do rap”. É assim que Negra Jaque responde, quase como uma quase oração, sobre os desejos para o futuro. Há quase 20 anos na cena do hip hop gaúcho, ela é cantora, rapper, compositora, educadora, ativista, feminista, inquieta e coordenadora do Galpão Cultural, Casa de Hip Hop no Morro da Cruz, seu território. Mas, repete, que pro futuro “só quer ser artista” 

A  rapper Negra Jaque, líder comunitária, contou parte de sua história em tese de mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ela defendeu que pé de pobre não tem número, algo relacionado a “arte de e para quem usa chinelo de dedo”, que perpassa toda a sua história e da região em que vive: vai virar livro e talvez até política pública. E é na entrada do Galpão Cultural, Casa de Hip Hop, no Morro da Cruz, na Zona Leste de Porto Alegre, que se destaca em meio à terra vermelha batida, aos latidos dos cachorros e aos miados dos gatos, que esta arte pulsa. Dá pra ver,  já a partir da fachada, toda grafitada, nas janelas e postes com frases como “sonhar e acreditar no sonho”, que o espaço  criado por Negra Jaque, naquelas três peças de madeira, mora um dos feitos que mais a empolgam. 

O Galpão, como projeto de território, foi o único do Rio Grande do Sul premiado pelo Ministério dos Direitos Humanos no Prêmio Cidadania na Periferia. Isso explica o trecho de abertura da tese de mestrado da rapper, “Casas de Hip Hop, criação e construção de saberes emancipatórios”: “Entendo que uma arte acessível, uma arte realmente democrática, deve ser construída com a ‘premissa do chinelo de dedo’. Arte com pé no chão, pele à mostra, no chão árido ou no barro vermelho. Todo brasileiro tem esse direito'”, diz. Para a rapper Negra Jaque, definitivamente pé de pobre não tem número.

 

Cansada, quase esgotada

Ela chega de moletom e calça preta, de tranças longas, e sorrisão. Desata a falar para a reportagem da Fala Feminina sobre como tudo começou, sobre as oficinas para crianças, a biblioteca, como consegue a grana para a manutenção do local, os editais, o auxílio dos outros três irmãos e educadores para tocar o Galpão e suas oficinas. E não é pouca coisa. Nos seus 36 anos, cerca de 20 de carreira, a artista construiu um universo para si, pro filho Erick, de 16 anos, e para mais, muito mais gente no Morro da Cruz.

Mas ela, a rapper Negra Jaque, está cansada, prestes a fazer um recesso de 15 dias para um check-up de saúde porque, por conta de tantas atividades acumuladas, teme um burnout (síndrome do esgotamento profissional). Porque além de artista, Negra Jaque cuida de um Instituto, de um filho, dá aulas nas oficinas, faz shows, grava jingles, fez mestrado, escreveu livro, criou um bloco de carnaval, viaja a trabalho, é mediadora do Museu do Hip Hop, está com outro livro engavetado, anda de Uber pra cima e pra baixo entre um trabalho e outro porque, ufa, não tem carro. Quem dá conta?

Jaque, tu cuidas de tanta gente por meio da tua arte e dos teus projetos. Quem cuida de ti?

Ninguém cuida de mim. Quero retomar as minhas terapias e não estou podendo. Espero que, a partir deste recesso, consiga. Quero recuperar um pouco da minha saúde mental, porque é desgastante. Eu escrevo projetos e capto recursos, a maior parte do tempo sozinha, e isso traz uma sobrecarga mental muito grande. Preciso parar.  

O que tu tratas mentalmente na terapia?

Essa questão da gente nunca estar satisfeita, que acho que é feminina, a busca da perfeição. Teve um tempo, quando eu comecei na outra temporada com a terapia, que era isso. “Eu não sou mãe o suficiente, não sou profissional o suficiente”, eu estava com o Ignácio [ex-companheiro], e achava que não era companheira suficiente. A gente tenta suprir com o trabalho. Sempre arruma uma desculpa pra não parar. E quando para é porque a doença nos para. A desculpa é essa. Preciso de uns dias por conta disso. Pra ter força pra isso, porque eu acabo passando mal em termos de ansiedade. Não quero um burnout. Tô com 36 anos. Há poucos dias a gente perdeu um amigo da cultura hip hop, com 47, por infarto. Estou um caos em  forma de  pessoa, mas não quero isso pra mim.

Em 2023, tu lançaste na Feira do Livro de Porto Alegre Linhas de Cura: ensaios sobre rap, negritude e outras formas de existir. O que tu querias com este livro?

É um conjunto com o álbum musical. Muitas músicas e algumas escritas têm a ver com isso. Não queria falar só sobre dor, é uma transição de carreira e é muito importante porque também intensificou o trabalho com o bloco de carnaval, o Bloco das Pretas [é liderado por Jaque], que é uma linguagem totalmente divertida, é pras mulheres se sentirem felizes, se sentirem acolhidas. É um repertório totalmente feminino, então Linhas de Cura foi um divisor de águas de coisas boas que eu quero cantar. Não só peso.

O rap tem sempre um peso muito grande pra mim. É tenso, é pesado, é uma música de denúncia, e quando eu escrevo o Linhas de Cura [cantarola uma das faixas do trabalho] começo a falar de coisas boas também, porque não quero falar só sobre as coisas ruins da periferia. 

No início, era só tristeza? 

Era. Só havia falta, só havia ausência, em vários campos. Da violência. Do sistema. Da questão das mulheres. Do quanto a gente ficava marginalizada nesse lugar de abandono. Falam em solidão da mulher negra, mas antes vem o abandono, isso é muito presente.

O que é esse abandono? 

Ele antecede a solidão. É o “tá, tudo bem, tu tá aí, eu tô indo”. É o abandono da que fica sozinha com os filhos, a da que fica com sobrecarga no trabalho, que é meu caso. Isso é abandono, eu digo que são microviolências no dia. Normalmente, quem fica responsável por dar conta de tudo são as mulheres. 

Como qualifica a importância do teu livro?

É super importante. Inclusive, quero agradecer à Libretos, que foi uma editora maravilhosa. Eu, a Pamela Amaro, a Poeta Desperta e a Fatima Farias, quatro mulheres negras, lançamos 4 livros diferentes juntas na Feira do Livro. São nossas narrativas. Muitas pessoas vêm, nos estudam, nos entrevistam, pegam nossas histórias, recontam, ganham dinheiro com isso… Só agora a gente consegue consegue acessar uma visibilidade importante que não tinha. É a pontinha do iceberg, mas estamos indo num caminho melhor do que quando comecei, há quase 20 anos. 

Quando tu descobriste que era preta?

Quando troquei de colégio. Saio daqui do morro e vou estudar no Instituto de Educação e aí eram eu e mais 4 meninas negras na sala. 

A maioria aqui do morro é negra?

Não. É a mesma realidade do Rio Grande do Sul, 20%. Os educadores são todos negros. Já o Galpão é um espaço de arte e cultura, não um espaço que aborda especificamente a negritude, um recorte étnico. É um local de arte e cultura e toda ela é bem-vinda. 

O que teu filho faz hoje? 

O Erick é estudante, ele acabou entrando nesse mundo de assistente de produção. É um guri ótimo, de ouro, tem 16 anos, é rápido, resolve as coisas, somos parceiros até de compartilhar o guarda-roupa. Criei ele sozinha. Me inspira, é a minha continuidade. Moramos com o pai dele até os 4 anos, depois teve a separação, fomos pra nossa casa, a gente até alternou uma guarda compartilhada. Ele não tem uma rotina como adolescente normal, nasceu com dermatite atópica severa. Estamos em busca que o Ministério Público libere o dinheiro para a compra de um medicamento que custa R$ 11 mil mensais, e o SUS não fornece. Nunca quis ter outro filho, tenho muito medo. Tenho muitas questões em relação à maternidade do Erick. Foi um desleixo porque eu estava recém me formando como professora primária, no magistério, eu não tinha uma casa. 

Tu não tinhas uma casa?

Eu morava com meu ex-companheiro e toda a família dele. Quando a gente se separou, fui morar numa casa provisória até ganhar o apartamento que moro hoje numa política pública do Demhab, ali embaixo [aponta em direção à Bento Gonçalves], que é tipo uma Cohab, um loteamento, e ninguém vai nos tirar. A casa emprestada tinha um arroio atrás que invadia o banheiro, a coisa era bem precária, ele era pequeno, tinha 4, 5 anos, e foi muito interessante quando a gente chegou para conhecer os apartamentos novos. Fomos ao nosso e ele foi correndo pro banheiro, segurou o vaso e sacudiu: “mamãe, esse não vai cai”. 

Como tu crias o Erick para não ser misógino, machista?

É muito diálogo o tempo inteiro na prática, nas escolhas que ele faz, nas coisas que ele vive no colégio. Ele também me ensina muito, principalmente em relação à diversidade, LGBTQIA+, tem amigos que passaram pelo processo de transição. E é diálogo constante. Cuido muito as músicas que ele consome na internet. Não é muito fácil. Tô tentando mostrar pra ele que as mulheres precisam ter os mesmos direitos, as mesmas oportunidades, e têm a mesma capacidade. E tento fazer com que ele seja uma voz que vá gritar a favor das mulheres. Isso é importante, que ele se incomode com a presença só de homens.

Por que te separaste 4 anos depois?

Porque não estava dando certo, era muito ciúme, muita briga também. Eu estava muito triste, e a gente não estava dando mais certo, sabe? Eu já não cantava, não fazia nada. Tenho uma rotina que é muito louca, e sempre foi assim. E na época estava casada e desacelerei por causa do filho. Só cuidava do filho e da casa, do filho e da casa. Aquilo foi me deixando mais triste. Gosto de circular pela cidade, ver pessoas, produzir coisas, estar em constante fluxo, acho que é o que me movimenta. Depois, tive um companheiro, o Ignácio, que inclusive foi uma das pessoas fundamentais pra gente erguer essa casinha aqui [o Galpão], e ele voltou pra Minas Gerais no fim do relacionamento. Fiquei com ele quase 4 anos.

A minha rotina é de artista. Se fosse homem, “tudo bem”, porque vejo meus amigos rappers, com companheiras de anos, fazendo tudo, tendo uma liberdade totalmente diferente. E vivem bem, e é tranquilo, e tá tudo certo. Vão pro estúdio gravar e não tem hora pra voltar. Na minha relação com Ignácio foi assim: “que horas tu volta?” eu odeio essa frase num grau… Eu vou voltar a hora que terminar tudo que tiver que fazer.

Ele acabou entrando no rolê da cultura, auxiliava nos shows como produtor e viajou comigo a muitos lugares. Só que a pressão é muita. Imagina tu morar, trabalhar, e fazer tudo com a mesma pessoa. A gente pegou o relacionamento num período de pandemia. Tem que respirar.

Quanto tu ganhas por mês?

Tenho o Museu da Cultura Hip Hop, que paga R$ 2,5 mil (o salário mínimo no Brasil é R$ 1.412). Eu sou mediadora lá 3 vezes por semana, por isso trabalho tanto. Porque tenho uma despesa enorme com tudo. E faço um monte de bico, show, apresentação, oficina, evento, produzo festas. Por isso o lance de dar uma parada. Tenho uma produtora cultural chamada Afro Laboratório, que virou Instituto Laboratório, para captação e parcerias para dar conta de todos esses projetos de cultura, o bloco de carnaval, o programa de TV (ela produz e apresenta o programa Hip Hop na TVE), o Centro Cultural. Eu tenho trabalhado em várias frentes… Só não posso sair da Negra Jaque. Tenho trabalhado muito o controle, tô um pouco melhor que há dois anos. Tô despontando na cidade. Tô fazendo sucesso? Eu não sei.

Como assim? 

Essa trajetória não tem reflexo nenhum. Não tenho um carro pra andar. Morro de rir porque todas os homens líderes das casas de hip hop têm carro. E aí temos dois centros culturais liderados por mulheres e nós não temos carro. E não é pra ter luxo, mas porque se gasta horrores de Uber e atrasa a vida pra ir a qualquer lugar, por mais que eu tenha estabilidade nos trabalhos. Que bom que não passo fome, mas não consigo passar daí. Tenho quase 20 anos de trajetória, não era pra estar assim.

Quais são os teus luxos?

Só andar de Uber para chegar mais rápido nos lugares, gasto muito com transporte. Os lanches no galpão sou eu que custeio com recurso de show. 

Por que o rap? Não é uma coisa muito masculina?

Ele abre tantos espaços, pode ser tão diverso, pode se misturar com tanta coisa, tanta coisa, que isso me encanta. A mesma música que canto num show de rap estou cantando num bloco de carnaval, na batucada. Sou vocalista do Bloco das Pretas, produtora e fundadora. Tem isso também, não tinha nem um bloco de mulheres negras na cidade, e a gente fez. Recebe homens, mulheres brancas, todo mundo, se a gente conseguir um dia ter uma bateria só de mulheres vai ser lindo. Tem no máximo seis mulheres na banda, mas é uma realidade diferente porque elas não vão se ausentar do trabalho, de ter o dinheiro das faxinas, de ficar com os filhos para ir para a bateria. Estamos buscando uma bolsa, não vamos tirar uma mulher que tá cuidando de uma criança pra ela só vir tocar.

Sobre os editais, como entra o dinheiro?

São três níveis, nas nossas categorias: coletivos, CNPJ e via MEI. O nosso é via CNPJ por enquanto. Teve uma época que eu disse, “galera, eu não aguento mais pedir dinheiro, vamos nos organizar”.

O que tu sentes?

É meio humilhação, sabe? Tem um recorte que prejudica muitas mulheres. Vejo projetos com homens que ganham R$ 200 mil, R$ 300 mil, de milhões, e os projetos liderados por mulheres estão sempre atrás. Isso é bem difícil. 

Temos vários editais com reserva de vaga, que dão prioridade paras mulheres, e isso é muito importante para que daqui a pouco tenha uma grande virada de chave para economia da cultura, que necessita de emendas parlamentares a acordos com empresas. Vejo outros projetos da cultura hip hop liderados por homens conseguirem tudo. É bem difícil. Não é suficiente. Puxa, dentro de uma periferia, numa comunidade, sou uma mulher negra, o que precisa mais? O que preciso mostrar que a gente realmente necessita, sabe? É bem complexo.

Sempre soube que tu tinhas uma coisa pra ti na vida quando tu eras criança? Qual era teu sonho?

Não sabia. Quando eu tinha 7 anos queria dançar, queria ficar dançando, participava de grupos desde pequena, grupo afro, sabia todas as coreografias possíveis. Eu amava dançar e me apresentar. Quando chegou a adolescência, fui pra dentro de um casulo e não queria mais aparecer.

Por quê?

Porque eu tinha vergonha. Por causa do colégio. A escola sempre foi terrível. Estudei no Araújo Vianna, que é uma escola que tem aqui no fundo da rua. Ali pelos 10, 11 anos, tudo começa a crescer, peito, bunda, e os olhares dos meninos também. A gente via quem eram as meninas queridas da escola. Aí, comecei a estudar. “Ah, tá tudo certo. Tô nem aí pra vocês”. E então iniciaram as competições pelas melhores notas com os meninos da sala. 

E tu tiravas notas boas? 

Sentava na frente da professora. Eram notas muito boas.

Tu achas que é isso que te salvava?

Acho que sim. Queria ficar centrada, escrevia muito. Adorava aula de português, história. E o negócio era competir também. 

E a tua mãe?

A mãe não tava nem aí se a gente aprendia ou não. Ela era empregada doméstica e estudou até o quarto ano. A gente escrevia  por ela, sabia escrever só o nome. Ela falava toda hora: “eu sou burra, eu não sei, eu sou burra, eu não sei”. 

Como isso não afetou tua autoestima?

Porque ela dizia “a mãe é burra, mas tu vai estudar”. Sempre fui a que tinha que cuidar do G [o irmão Geovane], temos dois anos de diferença. A gente ficava com as crianças no pátio da vó, a mãe ia fazer a faxina dela, doméstica, e quando chegava era novela ou, nos fins de semana, se reunia com as minhas tias. Então, o rolê de estar com a mãe sempre foi solto. Tinha que cuidar do Maninho. Ah, o leite é do Maninho. Mas são coisas complexas. É difícil comprar um moletom novo. Por que vou gastar dinheiro com um moletom novo? A vida toda eu ganhei coisas doadas, roupas doadas, porque a minha mãe era faxineira e babá, ela cuidava das meninas da patroa. O que sobrava, vinha pra mim.

 

Eu tinha o sonho do do tênis que não entrava água. Era o mais importante. Porque sempre ganhei tudo de segunda mão e quando ganhei meu primeiro cachê com o rap fui comprar um tênis que não entrava água. Eu pegava chuva e fingia que que o pé tava seco por 3, 4 horas… Era um fingimento. 

 

Como tu vês a amizade feminina?

Só isso faz fortalecer uma à outra, porque senão a situação tava pior. Uma faxina pra outra, tem coisas sobrando na casa, dá pra outra. Eu cresci assim. Vi minha mãe ajudando vizinhas, amigas e tias. Muitas vezes, eu tive que ceder minha cama porque uma engravidava e tinha que dar lugar pra ganhar o filho. Acontece com frequência. As mulheres sempre se ajudaram, mesmo não sendo da mesma família. 

Só pôde contar contigo?

Não, mesmo com a função da nossa mãe, ela não era ausente na nossa vida. Era mais presente que a mãe dela foi pra ela. Estamos passando por um processo de quebrar estigmas também. Pude contar com os amigos da mãe, com as tias que estavam na minha volta, e depois com os educadores que conheci nos cursos que eu fiz. Porque sempre gostei muito de aprender coisas e aí fazia todos os cursos que tinha na volta. O espaço que tinha no São José Leonardo Murialdo foi fundamental. Foi dentro do Murialdo que o rap entrou na minha vida. Faço o oitavo ano, me formo no coleginho aqui da vila e vou pro Instituto de Educação. Ao mesmo tempo, comecei a fazer cursos de educação social no Murialdo. 

O hip hop é preto? 

Não.

O rap é preto? 

Não no Estado, mas nacionalmente é. 

Tu és artista, como funciona a tua sensibilidade? 

De tempo em tempo, vou renovando isso. Até minha mãe falecer era de um jeito, porque tu não compreende as mães até perder elas. É bem doloroso. Meu aprendizado sobre ser mãe, mulher e artista passa por várias fases, até que comecei a ter consciência e foi emblemático. Só fui entender minha mãe depois que ela faleceu. Muitas meninas se espelham em mim, então é um ciclo. Vai fazendo, vai olhando, e pensa no que vai deixar pra trás, e no que partilhar. É um fortalecimento que não é fácil, porque às vezes tu nem tá bem. Como vai fortalecer os outros? Cada vez tenho mais mulheres a minha volta, tem minha irmã, a minha sobrinha, as amigas. São universos de afinidades e compreensões. O fortalecimento feminino tem a ver com isso, com afinidades e compreensões, o quanto  a gente pode achar o que nos une e o quanto pode compreender a outra no universo dela.

Eu tinha muitas questões com a minha mãe porque ela aceitava violências do meu pai, e eu não entendia porquê.  Eu também era violenta pressionando ela no meio da guerra que ela vivia porque eram várias violências e contrapartidas e vem uma adolescente cobrando. Eu tinha ódio da minha mãe, era horrível. Eu não queria ficar perto dela porque ela aceitava aquilo do meu pai, e eu era imatura, não conseguia entender o que acontecia. Mas foi importante compreender, mesmo de forma tardia.

Tento devolver um pouco pras meninas que eu conheço hoje. Não pressiono ninguém pelo que vive, seja no Galpão, seja no Espaço de Acolhimento. Às vezes, as pessoas só precisam de escuta, elas mesmas vão procurar as respostas. Cada uma tem seu tempo e sua resposta internamente. 

 Tu já experimentaste drogas?

Nunca, meu pai morreu viciado em crack. Como vou ter alguma motivação pra fazer alguma coisa dessa? A mãe segurou a barra por um tempo. Ela também, coitada, se cuidava na medida do possível. Descobriu que estava com câncer, fez cirurgia no útero, fez vesícula e não melhorava, por conta de negligência médica também. Quando a gente viu, ela já estava em estado muito avançado. Aí, em seguida, o pai faleceu também.

 

Eu queria ser só artista, pro futuro só quero cantar 

 

Tua arte mudou quando passou a ter a consciência da morte dos pais?

A mãe morreu em outubro de 2018. O pai em fevereiro de 2019. Linhas de cura veio disso. Eu não queria mais chorar, não queria mais falar de tanta dor. Queria algo que fosse mais ligado à cura. E, quando falo, é literal. Quero encontrar outras formas de existir porque não precisa só existir na manifestação, com a placa. O ativismo faz muito parte da minha trajetória, mas eu não preciso só estar fazendo isso. É incrível porque algumas pessoas artistas podem ser só artistas, eu sinto que existe uma pressão, que não posso ser só artista. Queria ser só artista. Pro futuro, eu quero só cantar

 

“Nunca tô satisfeita, nunca é o suficiente”

Isso tem um papel político?

Tem mas não precisava. Por que tem que ser tão forte o tempo todo? Resolveria tantos problemas não sendo. Quero só cantar, só fazer minha música. Mesmo que vá falar sobre coisas pesadas. Por que hoje eu não consigo só fazer música, receber dignamente sem precisar dar aula, ser mediadora, produzir eventos, organizar espaços e vender livros? Por que tem que ser tantas coisas para alcançar aquilo que minimamente uma pessoa que só canta faz? Eu preciso, além de sustentar minha casa, ajudar outros projetos. Aqui tem o G e a Jacy [irmãos] que são educadores, eu necessito ter recursos para minimamente pagar uma ajuda de custo pra eles, tenho que escrever projetos e editais. Com o Bloco das Pretas a mesma coisa. 

O Galpão por partes e pelas beiradas

Antes de chegar no “tutano” de quem é a Jaque, a própria Negra Jaque fez questão de contar como surgiu o Galpão. “O terreno foi comprado pela mãe, abandonado, tudo isso aqui chamam de área verde. Ela comprou e foi parcelando, só que acabou virando um lixão pra galera do beco. A gente já fazia ação cultural na rua. ‘Façam o que vocês quiserem’, ela disse, e fomos arrecadando material de construção com os amigos. Ainda continuamos arrecadando, tanto que em breve vamos inaugurar o espaço de alfabetização digital. São oito computadores, ainda estão tapadinhos, a sala com cheirinho de tinta. A cultura é fundamental, mas criança de barriga vazia não aprende e é preciso promover esse acesso digital, porque senão não faz sentido eles precisarem fazer um currículo e não saberem nem ligar o computador. Então, não é um espaço para informática, é um espaço para alfabetização digital. É muita carência, é necessário primeiro se alfabetizar literalmente nesse mundo digital.”

Compromisso com a continuidade

Falo muito do Galpão Cultural em todos os lugares que vou. É como se representasse o meu compromisso com a continuidade, de tudo o que o hip hop me ensinou, os aspectos de cidadania, de como se colocar no mundo, o fortalecimento de identidade. É o lugar em que eu tô devolvendo tudo, eu aprendi tanta coisa. O meu trabalho ampliou pra cidade, ampliou pro Estado, vou pra vários lugares, e tenho o Galpão como porto seguro, é a nossa casa coletiva.”

A tua família veio de onde?

Não sei. Só sei que a gente tava aqui!

Criamos o Bloco das Pretas. Não tínhamos uma coletânea de hip hop, criamos, e assim vai. Nunca tinha escrito um livro, criei o Linhas de Cura. O outro livro tá engavetado e quero ver se consigo fazer algo para crianças porque tenho um público bem grande.

E o tema do próximo livro?

Será sobre casas de hip hop, que é meu projeto de mestrado, e paralelo a ele o infantil. Até o meu projeto, não havia pesquisa sobre isso e pode virar uma política pública em nível nacional. Agora tem um projeto de mestrado embasado que pode dar origem à criação de implantação de casas de hip hop nos territórios. 

Como nasce uma música, uma composição?

Às vezes, sonho de madrugada, vem a melodia, pego o celular e gravo. Não só a letra, mas a melodia como veio na minha mente. Às vezes, é um insight, às vezes, é produção porque escutei um beat ou quero escrever sobre algo. Às vezes, é uma encomenda de um jingle. Sempre tive facilidade com rima, com a escrita, li muito cedo. Com 12, 13 anos já lia José de Alencar, Machado de Assis, lia todos os clássicos na biblioteca, onde ninguém queria estar. 

Como nasceu teu projeto de mestrado?

Visitei vários espaços parecidos com o meus, em lugares diferentes, que são casas lideradas por pessoas pretas, espaços periféricos, alguns conveniados com a prefeitura, outros não. Algumas construídas do zero, como essa aqui, outras não. Ser um artista é ser um fazedor de cultura e da obra. Eu brinco com essas palavras, que é preciso tomar o prumo da obra, seja ela construída, seja ela da oralidade nesta arte imaterial.

O que é o prumo da obra?

É não perder o objetivo para que se veio. Todo mundo agora – uma galera do trap (subgênero do rap e hip hop) – que tá fazendo músicas em que as letras são bem parecidas com funk: “ela senta, ela bota e..”‘ Acho péssimo. E não é por conta do ritmo musical, é por causa das letras dos MCs ou dos cantores misóginos. Isso tem na música tradicionalista também. A  autoafirmação deles é necessária para desqualificar a existência do outro’.

Na tese, tu falas que pé de pobre não tem número. Como é isso?

Se vocês olharem [aponta para o chão que se vislumbra por uma das janelas do Galpão], é aquilo. Toda periferia é assim, é esse barro vermelho. É muito presente em  todo o canto que a gente passa. E o que fazemos aqui é arte, não só o que tem dentro do MARGS (Museu de Arte do Rio Grande do Sul). Se pode fazer aqui, em todos os territórios do planeta, pensando inclusive que seja uma arte sustentável, com reciclagem. Podemos mudar todo o caminho da arte, porque ela pode ser uma ferramenta de prazer, satisfação, estimula a capacidade humana de entender, desenvolver sentimentos e ser mais sensível a tudo que está ao redor. É um exercício profundo de humanidade. Isso não se compra no supermercado, só se consegue com experiências e vivências. Quanto mais simples, mais acessível a arte for, mais seres humanos com a capacidade de empatia, de solidariedade, de compreender o outro a gente vai ter. 

 

 

Chinelos sem número…

“Era uma daquelas tardes áridas do verão porto-alegrense, no Morro da Cruz. Em meio a uma roda de conversa, entre uma pergunta e outra, observo nossos pés empoeirados. Percebo que um dos meninos, de seus 8 ou 9 anos, usa um chinelo enorme. Pergunto o que aconteceu. Ele timidamente responde que estava com o chinelo da mãe.

Cresci ouvindo que “pé de pobre não tem número”. Minha mãe, como muitas mulheres da comunidade, trabalhava como doméstica e levava para casa tudo o que recebia de doação. Naqueles dias, em plena pandemia, estávamos justamente montando o bazar, para arrecadação de fundos destinados a obras no Galpão. Em meio a tantas peças, felizmente havia um chinelo infantil. Que bom. O chinelo do bazar serviu nos pés do menino.

Tenho usado em entrevistas e depoimentos a expressão “arte de e para quem usa chinelo de dedo”. Entendo que uma arte acessível, uma arte realmente democrática, deve ser construída com a “premissa do chinelo de dedo”. Arte com pé no chão, pele à mostra, no chão árido ou no barro vermelho. Todo brasileiro tem esse direito.”

Início da tese de mestrado da rapper Negra Jaque, Jaqueline Trindade Pereira – “Casas de Hip Hop, criação e construção de saberes emancipatórios”)

Acompanhe a Negra Jaque no instagram @negrajaqueoficial

 

Texto de Tatiana Bandeira, @tbandeira

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