“A mulher é o negro do mundo. A mulher é a escrava dos escravos. Se ela tenta ser livre, tu dizes que ela não te ama. Se ela pensa, tu dizes que ela quer ser homem“. Esse trecho é de Woman Is The Nigger Of The World, de John Lennon, canção lançada em 1972 que expõe uma realidade que parece seguir a mesma em pleno 2020. O julgamento sobre as mulheres é uma constante em uma sociedade culturalmente patriarcal, e o preconceito racial faz tudo isso pesar o dobro nos ombros das negras. Resta a elas a solidão do final da fila, de serem a última opção, a única preta da sala.
Para a jornalista Elaine Barcellos de Araújo, 46 anos, quando se é mulher, preta e gorda, a vida tende a exercer a sua versão mais ríspida. “Meus pais tentaram me preparar para as batalhas futuras. Uma criança negra cresce sob a orientação de que deve estudar muito para ser alguém, ser humilde, provar o seu valor e ser quatro vezes mais eficiente do que qualquer outra pessoa não negra. Mas aos sete, oito ou nove anos de idade, quem entenderia?” Elaine percebeu ainda na juventude que a luta para qualquer conquista era dobrada, ou quadruplicada, como seus pais diziam. E que a rejeição e a solidão seriam suas grandes sombras.
Feridas históricas
“A herança da escravidão está enraizada na sociedade brasileira, e ano após ano se reproduz racista, sexista e classista por gerações”, comenta a jornalista.
Vale lembrar que no tempo da escravidão, os senhores de engenho tinham as negras e as índias como escravas sexuais, que eram tidas para o sexo consentido ou não. Eram consideradas sangue quente. Seus donos as abusavam, estupravam, obrigavam a realizar todos os seus fetiches e isso é refletido até os dias de hoje. Já as moças brancas e “de família”, eram as esposas.
“A toda hora uma sombra paira sobre uma pessoa negra, lembrando que ela não é bem-vinda, não é bonita, que não é capaz, mesmo apresentando o melhor currículo ou um comportamento irretocável.”, destaca Elaine. A pergunta que ela se faz é: “hoje, em pleno século XXI, qual o motivo das mulheres negras ainda serem trocadas por mulheres tidas como parte de um padrão perfeito: brancas, cisgênero e magras?”
No último Censo, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, dados apontavam que mais da metade das mulheres negras – 52,52% – são solteiras. Há anos o movimento feminista negro aborda essa pauta, mas ultimamente, com a força das redes sociais, o debate tem se amplificado.
Em 2008, a socióloga e professora da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), Ana Cláudia Lemos Pacheco se tornou doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a tese “Branca para casar, mulata para f…, negra para trabalhar”: escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em Salvador, Bahia, convertida no livro Mulher negra: afetividade e solidão. Nele, Ana Cláudia constata a existência de um processo histórico que desumaniza a mulher negra, posicionando-a como um sujeito sem sentimentos, animalizado, hipersexualizado, ou seja: que não é digno de ser amado, nem de amar. Diferente do que acontece com a mulher branca e da elevação de status de quem se relaciona com ela.
Conforme Elaine, para quem está fora do padrão eurocêntrico, o sistema não oferece muitas opções de escolha. “Foi assim por muitos anos no mundo da moda, até surgir os tamanhos plus size, e com a indústria da beleza, quando os cosméticos não contemplavam a pele negra. Já no que toca o coração, o cenário ainda persiste. Vamos lutando para que histórias de abandono de pai ou marido, de relacionamentos extraconjugais, de violência doméstica, de objetificação do corpo negro feminino não se repitam.”
Mães (de) negras têm pressa
A solidão da mulher negra começa na infância. O relato da influenciadora digital Ana Paula Xongani no Youtube sobre uma experiência vivida por sua filha no condomínio onde moram é de deixar o coração de qualquer mãe em migalhas. Certo dia sua filha pediu para brincar no parquinho com outras crianças que viu por lá. Ela permitiu, mas as meninas fugiram ao receberem o convite. Ana Paula registrou a cena da filha rejeitada, solitária no balanço, enquanto as outras crianças brincavam juntas.
A solidão começa na falta de amizades e perpetua durante toda uma vida, em todos os aspectos.
“Crianças aprendem de uma forma assustadora a serem racistas”
Registra Ana Paula no vídeo. Ela ainda faz um apelo a outras mães e pais não negros a ensinarem seus filhos a não serem racistas. A rejeição é só uma das marcas que são carregadas por toda uma vida.
Dororidade
Sororidade é uma palavra já conhecida. É uma definição para relação de irmandade, união, afeto ou amizade entre mulheres. Talvez dororidade ainda não seja um termo tão difundido. O conceito é uma criação de Vilma Piedade, pós-graduada em Ciência da Literatura pela UFRJ, integrante da organização feminista PartidA Rio e da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). No livro Dororidade, lançado pela editora Nós, Piedade questiona a ideia de dororidade enquanto exercício de irmandade entre todas as mulheres.
“A dororidade nos faz olhar para as três questões juntas. Obriga a olhar para a dor que o racismo provoca, e essa dor é preta”, afirma. “Não é que a dor das pretas seja maior.
Dor é dor, e ponto. Dói muito ser mulher atacada pelo machismo, e dói muito ser mulher atacada pelo racismo.
Seja qual for o termo, que esse acolhimento viralize e quiçá solidão “deixe de ser substantivo feminino”.