Clitóris, inveja e liberdade

Mais de dois mil anos de castração nos levam a pensar: por que o prazer feminino incomoda tanto?
clitóris

Há mais de dois mil anos, Hipócrates já havia descrito a anatomia do pênis. As mulheres precisaram esperar até o ano de 1998 para ter acesso à anatomia no clitóris. Mais de dois mil anos de castração nos levam a pensar: porque o prazer feminino incomoda tanto?

Freud descreveu a mulher como o “continente negro”, depositando uma aura obscura sobre o feminino, como se houvesse um mistério insondável e inacessível.

Seria mesmo um mistério ou uma recusa a pensar o feminino?

O Mestre colocou o falo como parâmetro de todo desenvolvimento psicossexual, deixando a vagina como figurante e, mais adiante, afirmou que o pleno desenvolvimento genital da mulher só se daria a partir do orgasmo vaginal, considerando o orgasmo clitoriano sinal de imaturidade.

A grande questão é que a esmagadora maioria das mulheres refere ter apenas orgasmos clitorianos. Seria essa mais uma forma de castração desse órgão que tem como única finalidade o prazer?

Será que o amadurecimento psicossexual da mulher só se dá quando ela abre mão desse órgão e torna-o obsoleto? Será que cabe a um homem definir de que forma uma mulher deve gozar? Indo um pouco mais além, que peso tem o clitóris no psiquismo de um homem, tendo em vista que ele não tem nenhum órgão equivalente? Esse homem, que foi socializado para acreditar que seu desejo por sexo é maior do que o da mulher, mas não tem em seu corpo o respaldo dessa afirmação, teria algum interesse em apagar esse órgão tão simbólico?

Minha suspeita é a de que o clitóris é mais um desses órgãos femininos que guardam uma potência avassaladora e muito assustadora para os homens. Tanto homens quanto mulheres só sobreviveram porque em um momento muito vulnerável da vida foram cuidados por uma mulher (na grande maioria dos casos). A imagem infantil que ficou do corpo dessa mulher é um tanto mítica: um corpo capaz de gerar vida e alimento, uma mulher da qual se depende inteiramente, uma mãe toda-poderosa sem a qual não sobreviveríamos nem por um dia. Some-se a isso um órgão feito apenas para o prazer. Como saímos disso para o momento em que toda potência está sobre o falo? O que me parece aqui é que o falo opera como um substituto sobrevalorizado que funciona como compensador de uma inveja que em um momento muito primitivo quase nos engoliu. 

A potência do corpo feminino em algum momento transformou-se na ideia de sexo frágil.

É por isso que o prazer feminino é algo de que não podemos abrir mão porque isso seria abrir mão da nossa potência, autonomia e tudo aquilo que foi apagado junto com o clitóris.

É hora de desenhar a anatomia da liberdade e nos retirar desse núcleo destruidor de inveja em que fomos capturadas. É um prazer ser livre, literalmente.

 

Fernanda Soibelman é psicóloga, psicanalista e supervisora. Graduada em psicologia pela PUC-RS. Especialista em psicoterapia psicanalítica pelo Instituto Cyro Martins. Formação em Psicanálise pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (em andamento). Professora de pós graduação em Psicanálise pela Sanar. Mãe de um menino de 7 anos.
Acompanhe a Fernanda através do Instagram @fernandapsicanalista

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